30/09/2019 - 13:30 - 15:00 EO-9C - GT 9 - Drogas e contextos vulnerabilizantes |
31182 - VIDAS PRECÁRIAS, CUIDADO E “NÃO-CUIDADO”: UMA IMERSÃO ETNOGRÁFICA EM CENAS DE USO E CONSUMO DE CRACK LEILSON LIRA DE LIMA - UECE E UNICHRISTUS, MARIA ROCINEIDE FERREIRA DA SILVA - UECE, INDARA CAVALCANTE BEZERRA - UNIFOR
Introdução
Esta investigação situa o uso de crack numa rede de ações materiais e simbólicas relacionadas à omissão das políticas públicas no atendimento das demandas e necessidades de seus usuários. Há, portanto, um vácuo assistencial, com a formação de práticas de não-cuidado, o que nos leva ao questionamento: como e por que se conformam tal lacuna assistencial e o “não-cuidado?
Transpondo essa compreensão para as vidas que biografam este estudo, sustentamos que a população em uso de crack é vulnerável e isso a faz necessitar de cuidado. A omissão das políticas públicas impede que as necessidades dessas pessoas sejam atendidas. Há um não-cuidado, o cuidado que encerra em si e é reprimido e não acontece. Compreender essas experiências de usuários de crack e o cuidado e “não-cuidado” nas cenas de uso subsidia reflexões e reconstruções teóricas sobre a realidade social.
Objetivo
Descrever as experiências desses atores sociais com sofrimentos, perseguições, processos de reconhecimento de si e do outro, práticas de cuidado e “não-cuidado”, suas relações com comunidade, instituições e Estado em cenas de uso de crack.
Metodologia
Trata-se de uma imersão etnográfica em duas cenas de uso e comércio de crack localizadas em um bairro de Fortaleza, Ceará, que ocorreu entre maio de 2015 e setembro de 2016. Foram realizadas 37 entrevistas com usuários de crack, líder comunitário, familiar, trabalhadores e residentes do bairro.
A análise foi guiada pela produção narrativa com escrita fragmentada, representados pelos diferentes atores às categorias a partir de seus “microrrelatos”. A reflexão etnográfica e a reformulação teórica produziram a descrição das práticas de cuidado, da omissão de políticas públicas, com o não reconhecimento da vida precária e a existência do “não-cuidado”, e das experiências com adoecimentos, mortes e violências.
O conjunto de categorias desenvolvidas relacionaram-se às situações de violência; criminalizações; repressão policial; doenças, mal-estares e sofrimentos; práticas de cuidado; relações, omissões e dificuldades das pessoas em uso de crack com os serviços de saúde e de assistência social.
Resultados e Discussão
A observação e os microrrelatos revelaram experiências, que tomavam forma em conjunto com as múltiplas formas de viver, adoecer, cuidar e “não-cuidar”. A interação e o registro permitiram-nos evidenciar uma semiótica formada por um universo de signos, sentidos, linguagens e imagens, que integravam as cenas de uso de crack, emergindo relações entre os agentes sociais e instituições de saúde, família e comunidade.
Todas elas davam-se em uma área de vulnerabilidade social de indicadores sociais desfavoráveis. Com poucas políticas públicas e aparentes demandas, nesse lugar efetivavam-se mecanismos de repressão, de normalização e de medicalização social e legitimação de processos criminalizatórios e estigmatizantes e reatividades por parte dos usuários de crack.
As narrativas anunciam relações, trocas, economias, ritos, gestualidades corporais, estratégias de sobrevivências, violações e punições, omissões, enquadramentos, não reconhecimentos da vida precária e o “não-cuidado”.
O não-cuidado, assim, remeteu ao conceito de vida precária utilizado por Butler (2016): a precariedade como necessidade de suportes básicos: abrigo, alimentação, direito de ir e vir, proteção contra maus-tratos e opressão, direito à expressão, saúde e educação, isto é, ela perpassa pela condição de vulnerabilidade. E sendo o cuidado parte da vida humana, ele se manifesta diante das mudanças nas condições materiais e socioeconômicas e das vulnerabilidades (TRONTO, 2012).
Os interlocutores, portanto, ao narrarem a omissão, que aguça sofrimentos, produz distanciamentos e estranhamentos, desconhece precariedades e, assim, nega possibilidades de cuidar, num contexto caracterizado pela insistência de condicionantes sociais adversos e pelo aumento do número de casos de sífilis, infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e tuberculose entre pessoas em uso de crack, revelam o não reconhecimento da vida precária e existência de um “não-cuidar”.
Considerações Finais
A imersão nas cenas de uso permitiu-nos a reelaboração de experiências do cuidado e do não-cuidado. As narrativas formadoras de um conjunto de clarividências proporcionaram uma plurivocalidade capaz de argumentar e confrontar as questões sociais e de saúde que podem estar envolvidas no uso e consumo de crack e o não reconhecimento da vida precária e o “não-cuidado” caracterizam uma realidade social de omissão de políticas públicas e dificuldades de acesso a serviços, tendo como consequência o não atendimento às demandas e necessidades dos usuários, tanto nas cenas de uso quanto nos equipamentos sócio-assistenciais e de saúde.
Referências
BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 288p.
TRONTO, J. C. Le rique or le care? Paris: Presses des Mines, 2012. 74p.
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