29/09/2019 - 13:30 - 15:00 EO-7B - GT 7 - Abordagens e conceitos socioantropológicos em estudos sobre adoecimentos e sofrimentos de longa duração |
31053 - EXPERIÊNCIA, VIVÊNCIA E A PERSPECTIVA SOCIOANTROPOLÓGICA: FUNDAMENTOS PARA ESTUDOS DOS ADOECIMENTOS E CONDIÇÕES CRÔNICAS RENI APARECIDA BARSAGLINI - UFMT
É profícuo considerar a experiência nas pesquisas compreensivas críticas sobre cronicidade por privilegiar a perspectiva das pessoas afetadas e os aspectos subjetivos e existenciais imersos que são em processos onde se produzem e reproduzem os adoecidos. No entanto, notamos certa confusão no uso indistinto da experiência como conceito e abordagem e na correspondência à vivência, motivando este ensaio. O objetivo do texto é apresentar as proposições teóricas sobre a experiência como conceito por pressupostos radicados na Filosofia de tradição alemã amparados nas noções de Erlebnis e Erfahrung (vivência e experiência); e como abordagem remete à perspectiva socioantropológica que as articula e norteia nossa prática investigativa sobre o tema na área de CSHS.
A Erlebnis/vivência desponta no início do século XIX no bojo da oposição à razão e objetividade do Iluminismo e como reação a ele pelo Romantismo alemão que enfatiza o lirismo, subjetividade, sentimento, emoção e o Eu (Viesenteiner, 2013). O termo é marcado pela/o: 1) imediatez com o mundo, entre o homem e a vida; 2) significabilidade do vivenciado e 3) significado estético do seu conteúdo (Viesenteiner, 2013). Opondo-se à intencionalidade é contra-conceito da razão: se conceitualizamos uma Erlebnis, ela deixa de ser vivência, pois é o próprio fluir e sentir da existência não presidida pela razão distinguindo-se, assim, da Erfharung/experiência. Esta se viabiliza na Erlebnis sem exceção, mas se define pela intencionalidade atrelada à consciência pressupondo que objetos só existem para um sujeito que lhes significa.
A conexão se dá simultaneamente como momento de atenção entre a experiência viva, presencial, intuitiva em curso (Erlebnis) e a experiência vivida, conservada pela memória (Erfahrung) convertendo por interpretação a primeira em conhecimento hábil no mundo prático da vida cotidiana (Castro, 2012) onde, também, se instala e perdura o adoecimento ou condição crônica. E o que se compartilha nos relatos e como abordá-los?
Vivência (Erlebnis) é a jornada/travessia/exposição ao mundo e experiência (Erfahrung) o que retiramos desse encontro eu-mundo, de modo que só nos aproximamos dos sentidos representados ali no cadinho fronteiriço já como experiência. Este movimento transcorre no cotidiano – tempo comum da existência com acontecimentos que se efetivam no dia a dia, tanto de forma reprodutiva quanto criativa e transformativa (Pais, 1986) e requer ultrapassar a microssociologia tradicionalmente reservada à experiência, para entender práticas cotidianas, também, nos níveis estruturais e institucionais. Nos episódios ordinários/diários se manifestam os níveis normativos do plano macrossocial que alcançam pessoas e grupos. Tal articulação é proporcionada pela perspectiva socioantropológica (Canesqui, 2015) ao abordar a experiência reconhecendo a singularidade das vivências cotidianas (como sofrimentos, adoecimentos e condições crônicas) que serão interpretadas pelos envolvidos e ganharão sentido quando compreendidas indissociadas das peculiaridades biográficas (incluindo marcadores sociais de gênero, sexualidade, classe, raça/cor, etnia, geração, etc.), à corporalidade, aos contextos relacionais (com o corpo, pessoas, grupos, instituições, organizações, tecnologias etc), localizadas em tempo e espaços socio-históricos locais, atuais e mais amplos.
Concordamos que experiência envolve formas de apreender, interpretar ou construir a realidade ou perspectivas narradas pelas pessoas na cronicidade, que são elaboradas em função do momento histórico e das circunstancias materiais, sociais e simbólicas que as rodeiam; se trata de uma perspectiva entre muitas, que não é única, definitiva e nem a verdadeira, (Martinez et al., 1999).
O potencial da experiência como conceito e abordagem de fenômenos sociais, reivindica a compreensão das conexões/desconexões da vida cotidiana que transbordam supostas fronteiras disciplinares, teóricas, conceituais, metodológicas. E jamais esgotamos a compreensão da experiência: indissociada da vivência sua natureza é fluida, evanescente e mais fílmica do que fotográfica. O que conseguimos é relevar elementos existenciais marcantes editados e relatados pelos interlocutores situados em espaço e tempo e intermediados, ainda, pelos crivos da memória e da nossa interpretação, também localizada.
Referências
CANESQUI, A.M. “Pressão alta” no cotidiano: representações e experiência. RJ: Fiocruz, 2015.
CASTRO, F.F. A sociologia fenomenológica de Alfred Schutz. Ciênc. Soc. Unisinos, 48(1), 52-60, 2012.
MERCADO-MARTINEZ, F.J. et al . La perspectiva de los sujetos enfermos. Reflexiones sobre pasado, presente y futuro de la experiencia del padecimiento crónico. Cad. Saúde Pública, 15(1): 179-186, 1999.
PAIS, J.M. Paradigmas sociológicos na análise da vida quotidiana. Análise Social. XXII(90), 7-57, 1986.
VIESENTEINER, J.L. O conceito de Vivência (Erlebnis) em Nietzche: gênese, significado e recepção. Kriterion, 127(Jun.), 141-155, 2013.
|

|