28/09/2019 - 15:00 - 16:30 CB-16A - GT 16 - Violências e Aborto |
31004 - “FIZ UM ABORTO”: A IMPLOSÃO POLIFÔNICA DE SENTIDOS SOBRE ABORTO COMPARTILHADOS EM UMA COMUNIDADE ONLINE NANDA ISELE GALLAS DUARTE - ENSP/FIOCRUZ, VERA LUCIA MARQUES DA SILVA - ENSP/FIOCRUZ, LIANA WERNERSBACH PINTO - ENSP/FIOCRUZ
Introdução
A interação na internet entre mulheres que provocaram um aborto e o que tal interação produz de significados sobre a experiência são os objetos da dissertação de mestrado apresentada ao programa de Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, a partir da qual este resumo apresenta alguns resultados. A pesquisa analisou o compartilhamento de depoimentos de brasileiras na plataforma online “Fiz um aborto”, do portal do grupo Women on Web. Trata-se de um mapeamento de histórias de 151 países. Os critérios para a escolha deste portal incluem a facilidade de navegação, o grande número de depoimentos do Brasil (1.086 em janeiro de 2019) e o fato de informar publicamente as organizações que mantêm o projeto. O presente texto busca discutir o que a trama de narrativas desvela sobre os sentidos da experiência compartilhada sobre aborto provocado.
Objetivos
O objetivo geral da pesquisa do mestrado é compreender os sentidos do compartilhamento de experiências com aborto provocado na internet. Entre os objetivos específicos, aqueles que serão tratados neste resumo são: 1) Caracterizar o perfil das mulheres usuárias do portal e 2) Analisar as narrativas no seu conjunto, buscando perscrutar significados sobre a experiência de realizar um aborto construídos na interação entre estas mulheres
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de abordagem que mescla etnografia virtual com entrevista e observação da plataforma, e análise de narrativa. O desenho metodológico reconhece o relacionamento nuançado entre os mundos online e offline, sem separar a internet, como uma tecnologia, do processo de troca. De abril a dezembro de 2018, procedemos à observação da interação na plataforma do Women on Web, a coleta e análise de 22 narrativas das usuárias e à realização de entrevista com roteiro semiestruturado com uma representante da ONG. Para a análise de narrativa do conjunto dos depoimentos, utilizamos ainda a técnica de nuvem de palavras, produzindo imagens gráficas ilustrativas dos termos que explicitam a sua reincidência.
Resultados
As mulheres autoras das 22 histórias analisadas são jovens entre 19 e 29 anos, de camadas médias/baixas, moradoras de centros urbanos, sendo a maioria cristã e sem filhos, e com uma ampla variedade de arranjos conjugais. O conjunto das 22 histórias foi considerado como uma grande trama narrativa, dividida em quatro etapas: a desconfiança e confirmação da gestação, a preparação para realização do aborto, o procedimento em si e a confirmação da realização do aborto. Para cada etapa, construímos nuvens de palavras que organizam os qualificadores de cada momento e mostram que as etapas vão transformando as emoções e sentidos mais frequentes. A partir da análise desses momentos, apontamos quatro aprendizados com o campo:
1) A experiência com aborto provocado é uma multiplicidade de experiências: os diferentes momentos conformam diferentes experiências até em uma mesma narrativa.
2) O corpo é um dos protagonistas das narrativas, aparece como um importante marcador das diferenças entre as várias experiências e da transição entre os momentos que compõem o itinerário abortivo, sobretudo dos significados sobre suspensão (desordem) e retomada da harmonia com o corpo (que marca o retorno à normalidade).
3) As narrativas provocam uma implosão polifônica dos sentidos construídos em relação à experiência de abortar, que também diz respeito à reprodução das (e à tensão com as) disputas sociais, morais e políticas em torno dos significados do aborto.
4) Um dos elementos centrais para a compreensão da implosão polifônica e de suas tensões é a forma como as mulheres se relacionam com o dispositivo da maternidade, que vincula o valor da individualidade das mulheres ao papel de mãe, suspendendo a diversidade de como as mulheres podem se relacionar com a maternidade.
Conclusões
A compreensão sobre a multiplicidade narrativa em torno da experiência com o aborto não diz respeito apenas à diversidade de contextos de sua realização. A descoberta da gestação, a procura por métodos abortivos, a realização do procedimento em contexto de clandestinidade e estigma, e a elaboração a partir da confirmação da efetivação do aborto conformam múltiplas experiências dentro da experiência, inclusive para a mesma pessoa. O desespero da descoberta da gestação e a suspensão da normalidade que ela provoca não é exatamente o mesmo desespero que uma intercorrência durante o abortamento pode provocar. O “trauma do aborto” pode ser uma dor profunda com a própria decisão por realizá-lo, sim, mas também pode ser uma revolta com as condições brutais que precisaram ser enfrentadas, ou mesmo pode sequer existir na narrativa. O exercício de “abrir” a experiência narrada sobre aborto provocado em várias experiências possibilita problematizar em que contexto e a que situações determinadas emoções e sentidos se referem, evitando tomar a experiência com o aborto como um ato único e homogêneo.
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