28/09/2019 - 13:30 - 15:00 EO-20A - GT 20 - IST/HIV/Aids, políticas públicas e inequidades |
31123 - (IM)POSSIBILIDADES DA TERRITORIALIDADE? REFLEXÕES SOBRE O CUIDADO ÀS PESSOAS VIVENDO COM HIV NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO RAFAEL AGOSTINI - IFF/FIOCRUZ, IVIA MAKSUD - IFF/IFIOCRUZ
Desde o início da epidemia de HIV as respostas sociais vêm se (re)configurando, inclusive aquelas referentes à organização da atenção à saúde. Ao longo desse tempo experiências municipais de descentralização do cuidado às pessoas vivendo com HIV para a Atenção Primária em Saúde (APS) já foram implementadas Brasil afora, mas sua adoção na segunda maior cidade do país - o Rio de Janeiro - a partir de 2013, é bastante emblemática.
A partir de então foi sendo desenhada, no município, uma rede em que este cuidado deixou de ser responsabilidade exclusiva do Serviço de Atenção Especializada (SAE) e dos infectologistas e passou a ser coordenado pela APS a partir da Estratégia de Saúde da Família (EsF). Além de intentar alterar as bases epistêmicas das práticas em saúde, a sustentação institucional para o novo fluxo é a otimização da rede e a acomodação da expansão na demanda por acesso à prevenção e tratamento.
Cumpre lembrar que EsF é tida pelos planejadores em saúde como estratégia com potencial para resolver parte significativa das demandas por meio da execução dos princípios da APS como ser o primeiro contato do usuário e a coordenadora do seu trânsito na rede a partir da produção de cuidado integral e contínuo. A orientação à família e comunidade e a competência cultural também são vistas como elementos distintivos da EsF aditados pelos aportes da experiência nacional como o trabalho multidisciplinar e em equipe, a figura da Agente Comunitária de Saúde (ACS) e a territorialidade.
Essa nova configuração, além dos impactos burocráticos, incide na (re)produção de experiências nos sujeitos que vivem com o vírus e que tem, agora, sua assistência na EsF. Os profissionais da EsF também são afetados e (re)produzem sentidos e significados na lida com àquela condição que há pouco era restrita à “especialistas”. Destarte, nesta comunicação - produzida no âmbito de um doutoramento em Saúde Coletiva - discutiremos, em uma perspectiva compreensiva, os desafios e potencialidades da territorialidade no novo modelo de atenção.
Os dados discutidos se ancoraram em sete meses de trabalho etnográfico em uma unidade de EsF da região central do Rio de Janeiro e que incluiu observação participante, entrevistas semiestruturadas e grupos-focais. Nossos interlocutores foram pessoas vivendo com HIV e profissionais. Teórico-metodologicamente lançamos mão da bricolagem entre referenciais das Ciências Sociais e Humanas, notadamente da antropologia e do planejamento em saúde.
A adscrição de clientela por base territorial leva a saúde para onde a vida das pessoas acontece, oferece aos profissionais a possibilidade de conhecimento da realidade familiar e comunitária dos usuários, além de facilitar a criação de vínculo entre eles. No entanto, especificamente no caso do HIV, por se tratar de uma “epidemia de significados” (Treichler, 1989) ainda envolta por estigma, assume um lugar paradoxal.
Parte dos usuários, por exemplo, prefere que a ACS não conheça a sua sorologia por conta da dupla função - como profissional, mas também moradora do território. O argumento é que mesmo sem dolo, podem “deixar escapar” por “não estarem tão bem preparadas”. Tal preferência não se realiza, mas as profissionais garantem fingir desconhecimento até que o próprio usuário se sinta a vontade de contar; operam para isso, com categorias como “sigilo”, “direito” e “ética”. As Visitas Domiciliares (VD) frequentes, comuns no caso da tuberculose, só são possíveis pela adscrição territorial, mas são apontados pelos usuários como indiciárias da sorologia e, muitas vezes, rechaçadas.
Por outro lado, o acompanhamento perto de casa é apontado pelos usuários como positivo já que permite inserir o cuidado na rotina. Além disso, é exatamente por conta da proximidade territorial que uma das ACS pode “marcar em cima” no exemplo paradigmático de um usuário em situação de extrema vulnerabilidade quando ele deixa de ir à unidade nos dias combinados. O jovem vive com HIV e faz acompanhamento da tuberculose, indo à clínica duas vezes por semana para tomar as injeções. Essa frequência também seria impossível em outra unidade pois sua única renda, o Bolsa Família, mal dá para se alimentar. O fato da ACS ser informada por “fofoca” de que o jovem estava “indo para a Lapa nas madrugadas” e ter “puxado a orelha” que ele deveria “melhorar [primeiro], depois vai curtir” evidencia o paradoxo da territorialidade. Em outro caso, a VD dois dias após o cadastro na equipe faz com que o usuário passe a confiar no médico porque se considera escolhido pelo tratamento “particular”.
Os elementos aqui discutidos não devem interditar o debate ou sentenciar aprioristicamente - ao sucesso ou fracasso - a descentralização do cuidado às pessoas vivendo com HIV. Ao contrário, a territorialidade precisa ser pensada como uma dimensão tática e a forma como é incorporada no caso de uma condição ainda estigmatizada precisa objetivar, a partir da realidade dos usuários, a qualificação dos serviços de atenção.
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