29/09/2019 - 13:30 - 15:00 EO-19C - GT 19 - Novas Mídias e Saúde |
30174 - TRANSFORMANDO A DOR EM SOFRIMENTO: A POTENCIALIDADE DOS TESTEMUNHOS COMPARTILHADOS POR PAIS DE CRIANÇAS COM AUTISMO NO YOUTUBE BÁRBARA MORAIS SANTIAGO FREITAS - IFF/FIOCRUZ, PAULA GAUDENZI - IFF/FIOCRUZ
Compreendemos que ter um filho com autismo desloca os pais do ideal de parentalidade e exige uma reinvenção da família, pois seus filhos não vivenciam o mundo conforme as expectativas sociais hegemônicas e tradicionais. Partimos do pressuposto de que tornar pública essa experiência privada pode contribuir para a construção de um novo lugar social e, neste sentido, as redes sociais podem servir como um locus importante para tal. A Internet reconfigurou os lugares de fala e a amplitude do alcance dos conteúdos e, neste contexto, a plataforma Youtube mostra-se como um campo de estudo relevante.
Nosso objetivo é refletir sobre a possibilidade de que alguns dos relatos produzidos por familiares e compartilhados no espaço digital podem ser considerados como testemunhos, da forma como Veena Das trabalha o conceito: relatos que tornam pública uma experiência privada e, desta forma, politizam o sofrimento. Chamamos de testemunhos a produção de narrativas que são um misto de confissão, reflexão e registro - no sentido de deixar uma marca sobre as experiências vividas. Como refere Beatriz Sarlo, não há testemunho sem experiência, assim como não há experiência sem a narração, pois a linguagem libera o sujeito de sua experiência e o exime do esquecimento. Neste bojo, nos perguntamos em que medida a fala destes familiares sobre suas experiências constrói um lugar público/político e estabelece redes de pertencimento, pois testemunhar é um ato de linguagem que requer a experiência psíquica do outro como ser singular e representante do conjunto. .
Realizamos uma análise das narrativas produzidas por familiares de autistas nos vídeos compartilhados no YouTube. Os vídeos foram selecionados a partir do descritor “filho autista”, primeiramente priorizando o número de visualizações dos vídeos. Assim, chegamos aos canais que foram hierarquizados pela quantidade de inscritos e, então, escolhemos para análise apenas aqueles vídeos em que os pais de autistas falavam sobre suas experiências privadas sobre o autismo sem intenção direta de produzir conteúdo para auxiliar outros pais. Analisamos então os vídeos que narram como os familiares receberam o diagnóstico de autismo de seus filhos e como lidaram com esta questão, além de vídeos que contam sobre como é ter uma criança autista na família.
Nos vídeos analisados, as mulheres narram o impacto que ter seu filho diagnosticado com autismo teve em sua subjetividade, gerando uma sensação de desamparo e angústia. Através dos relatos, podemos inferir que no momento de confirmação do diagnóstico há uma sensação de que seu cotidiano não será como o planejado e, com efeito, inicia-se o processo de luto do filho ideal e um esgarçamento simbólico gerado pela sensação radical de perda dos referenciais.
Observamos que as mulheres frequentemente falam sobre seus sentimentos negativos utilizando as fases do luto como recurso narrativo. Compreendemos que desta forma elas se autorizam a compartilhar suas experiências dentro da plataforma Youtube, pois os momentos "negativos" são encadeados com a fase final descrita do luto que seria a "aceitação". Portanto, nos parece que a elaboração dessa dor permite que a experiência se torne pública. Mas nos perguntamos se o próprio ato de narrar não teria tal função de elaboração. De todo modo, observamos que as narrativas demonstram que ter um filho com autismo não é uma “tragédia” e que, apesar da dor inicial, existe o potencial de uma vida criativa e considerada sob leituras positivas.
As estratégias utilizadas pelos familiares cujas narrativas foram analisadas se situam na perspectiva de reconstrução do mundo particular, em um primeiro momento. Entendemos que, ao tornar pública a experiência de ser mãe/pai de uma criança com autismo, é possível construir uma nova narrativa para si e vislumbrar um outro lugar social, principalmente entre os pares. Há uma dimensão autobiográfica própria do testemunho, capaz de produzir um valor moral sobre o autismo e possibilitando a construção de sentidos sobre a experiência de ser mãe ou pai de autista. A produção de vídeos sobre cotidianos atípicos podem ser ferramentas que transformam a dor em sofrimento, como proposto por Birman. Tendo em vista que transforma uma experiência subjetiva encerrada em si mesma através da introdução da dimensão de alteridade e da temporalidade. A utilização de uma plataforma de grande alcance para o compartilhamento desses vídeos proporciona algo muito importante para as trajetórias que, muitas vezes, são invisibilizadas: o reconhecimento público da dor e, com efeito, sair posição de vítima passiva e atuar como uma testemunha ativa.
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