28/09/2019 - 13:30 - 15:00 EO-25A - GT 25 - Entre aldeias, ruas e terreiros: do bem viver à RP |
30453 - AS TRAMAS DE AXÉ NAS REDES DO CUIDAR: UMA ANÁLISE ACERCA DAS MÚLTIPLAS FACES DO CUIDADO EM SAÚDE MENTAL NOS TERREIROS. CLARICE MOREIRA PORTUGAL - UFBA, MÔNICA DE OLIVEIRA NUNES - UFBA
Introdução: Este trabalho aborda alguns dos resultados apresentados na tese de doutorado “Entre enredos de axé e redes de saúde mental: uma cartoetnografia de adeptos do candomblé em processo de desinstitucionalização” (PORTUGAL, 2018), que teve como objetivo geral elaborar uma cartoetnografia dos territórios existenciais e das práticas cotidianas de cuidado de adeptos do candomblé em processo de desinstitucionalização em saúde mental e vinculados a serviços de saúde mental de Salvador (BA) e adjacências. Objetivos: O presente trabalho visa especificamente a discutir as vicissitudes ligadas ao acolhimento e à oferta de cuidado nos terreiros, bem como se propõe a elucidar desde questões ligadas aos tipos de cuidado ofertados à negociação entre os demandantes e os cuidadores – no caso, em especial os sacerdotes – até as repercussões biográficas e de pertencimento que tais relações possuem e o papel das lideranças religiosas afro-brasileiras no cuidado à saúde da população. Metodologia: Para esses fins, nos valemos de uma nova abordagem teórico-metodológica que aqui denominamos cartoetnográfica (PORTUGAL; NUNES, 2015). A pesquisa envolveu entrevistas não-estruturadas com os interlocutores-chave (participantes-usuários) e os interlocutores-satélite (profissionais de saúde mental, sacerdotes, familiares, amigos etc.), conjugada à observação participante nos moldes etnográficos nos espaços da vida cotidiana dos participantes (residência, terreiro, serviços de saúde, locais de lazer, espaços de trabalho etc.). A análise de dados compreendeu dois movimentos contíguos: uma análise inicial do material empírico a partir de categorias éticas elaboradas no âmbito da pesquisa maior na qual o presente projeto se insere e a elaboração das categorias analíticas a partir das recorrências e idiossincrasias do campo, amparada no que propusemos como “matriz cartoetnográfica de linhas de pensamento” (PORTUGAL; NUNES, 2019, no prelo). Resultados e discussão: De acordo com nossos achados, a doença mental em si não aparece como elemento de estigma ou intolerância no âmbito dos Ilês em que se desenvolveu este estudo, mas como algo que exige cuidado em situações específicas e dá algumas especificidades ao “jeito de ser” da pessoa – principalmente em termos de algumas peculiaridades de comportamento e expressão e no sentido da elaboração do cotidiano em comparação aos considerados “normais”. As lideranças religiosas ressaltam a igualdade dessas pessoas em relação aos demais membros, afirmando a horizontalidade das relações entre os irmãos de santo de sua casa – o que também reitera a credibilidade e organização da comunidade que regem. Verificamos ainda que as redes de cuidado consolidadas no candomblé acabam por refletir uma ética do cuidado de si pensada nos termos foucaultianos (FOUCAULT, 1985; 2004). Tal elaboração ética é também corporificada e manifesta no zelo com a própria residência, que, por sua vez, se torna extensão da morada espiritual, colocando-se como espaço de afirmação do pertencimento e de identidade. Vislumbramos também toda uma gama de possibilidades de aquisição de pertencimento e reconhecimento por meio da posse e exercício de um cargo de santo, que delimita para essas pessoas uma afiliação na comunidade, na qual são percebidas e se percebem como um membro com direitos e deveres. Considerações finais: Diante do exposto, podemos afirmar que o terreiro não é, em princípio, concebido enquanto lugar terapêutico – ainda que tenha esse efeito –, mas sim como comunidade. Nele, a aflição é reconhecida e tratada, mas essa remissão do sofrimento presta-se a uma concepção mais ampla de si e do mundo e de fortalecimento para que se possa contribuir com o funcionamento e sobrevivência da comunidade, mesmo que para isso depois seja necessário diminuir ou pôr de lado o padecimento desses adeptos. Nesse sentido, os terreiros se mostram como profícuas instâncias de cuidado em saúde mental, porém, as tramas que esse cuidado forja em muito ultrapassam a lógica da assistência, mas criam e ajudam a sustentar modos não-hegemônicos de estar no mundo, ao possibilitarem potentes releituras das trajetórias biográfica, ancestral e religiosa. Com relação a isso, reiteramos aqui a importância da imersão e participação religiosa no candomblé para a elaboração de uma ética do cuidado de si na qual o cuidar do corpo, da casa, de si mesmo e do outro dá o tom das formas de se relacionar intra e extraterreiro. Por outro lado, não percebemos qualquer tipo de relação fanática ou formas de enclausuramento subjetivo nos terreiros, mas até um espaço para a preservação de si na impresumibilidade do contato com o outro, como nos mostra a significativa presença e manutenção do retraimento positivo (CORIN; LAUZON, 1992) por nossos interlocutores de formas bastante singulares e que não os isolam, mas lhes permitem circular e se relacionar dentro de suas possibilidades e a partir do que desejam manifestar ao próximo.
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