30/09/2019 - 13:30 - 15:00 EO-28F - GT 28 - Saúde, Currículo, Formação: Experiências, Vivências, Aprendizados e Resistência Sobre Raça, Etnia, Gênero e Seus (Des)Afetos: Formação e Qualificação |
31166 - VIVÊNCIAS E TRAJETÓRIAS UNIVERSITÁRIAS DE MULHERES NEGRAS E POBRES NA FORMAÇÃO EM MEDICINA VETERINÁRIA EDUARDA LOPES FERREIRA - UFV, PAULA DIAS BEVILACQUA - FIOCRUZ-MINAS
A medicina veterinária, incluída em 1997 como profissão da área da saúde (CNS, 1997), têm amplo e fundamental papel na promoção da saúde. Essa temática é pouco privilegiada na formação dos profissionais, fato evidenciado pela composição curricular e tipo de abordagem sobre os diferentes conteúdos do curso (PFUETZENREITER e ZYLBERSZTAJN, 2004; TELLES et al., 2017). Além disso, a veterinária se estabelece como profissão de prestígio, com status social consolidado frente a outras profissões, implicando em um processo formativo elitizado (FIAMENGUE, 2003). Tais aspectos, em conjunto, produzem profissionais alheios e desinteressados de questões importantes para a promoção da saúde, como as especificidades da população brasileira em relação às categorias classe, gênero e raça. Partindo dessas constatações, investigamos aspectos da formação acadêmica em medicina veterinária que contribuem para a elitização e distanciamento da/os profissionais de uma atuação mais cidadã. Realizamos 30 entrevistas semiestruturadas com estudantes de todos os períodos (1º ao 10º) do curso de graduação da Universidade Federal de Viçosa/UFV, abordando aspectos sobre interesses/motivações com a profissão e suas áreas de atuação; vivências curriculares e extracurriculares; percepções sobre o serviço veterinário e interação com tutores dos animais. Do total de entrevistados/as, 73% eram mulheres; 37% e 17% eram pardas/os e pretas/os, respectivamente, e 53% tinham renda familiar até 4 salários mínimos. Neste trabalho, apresentaremos os resultados das entrevistas realizadas com cinco mulheres negras. Essas estudantes tiveram formação educacional básica exclusiva em escola pública ou particular com bolsa; renda familiar de até quatro salários mínimos e acessaram a universidade por cotas (cor, renda e/ou escola pública). Os relatos das estudantes explicitam vivências de opressão na experiência acadêmica. A desigualdade de gênero se mostrou, principalmente, na ideia de que mulheres não têm competência para atuar em determinadas áreas, como clínica e cirurgia de grandes animais e produção, requerendo grande esforço para serem valorizadas e acreditadas profissionalmente. As entrevistadas relataram maior dificuldade que outras mulheres, pois além da imposição de papéis de gênero, lidam com o racismo institucional, a segregação e o favorecimento de estudantes brancos, partindo, muitas vezes, explicitamente, dos docentes. O seguinte relato aponta o lugar de privilégios do curso, alinhado a um projeto de desenvolvimento elitista: “O curso de veterinária é todo branco. Os professores todo mundo branco, todo mundo rico. Todo mundo [alunos] tem fazenda, o pessoal tá se formando pra trabalhar nas fazendas deles”. O aspecto elitista do curso em relação a renda se refletiu na percepção de que o curso se destina a “pessoas que têm muita grana”, considerando a quantidade e o custo de materiais (livros, instrumentos de prática) que os estudantes, independente da condição financeira, são obrigados a adquirir para ter inserção plena, ou mesmo acesso ao processo educativo. Tal problemática se agrava quando a estudante depende da assistência estudantil para permanência no curso, como é o caso de uma dessas mulheres: “[...] é uma questão de resistência. Não posso deixar meu coeficiente de rendimento cair, se não perco a bolsa. Se eu perder a bolsa, quais são as chances deu continuar estudando aqui?”. Outra face do elitismo é a relação com o público que acessa os serviços veterinários da instituição: “O perfil das pessoas parecem (sic) o mesmo, tanto quem atende quanto de quem é atendida, são pessoas com uma condição financeira melhor e isso dentro do curso é algo pouco discutido”. Pessoas “sem instrução”, “de origem humilde” não são bem atendidas, há dificuldade em ouvi-las e se comunicar de forma acessível. Os relatos apontam para a interseccionalidade de marcadores que vulnerabilizam e definem a exclusão de um grupo específico de estudantes, mulheres negras e pobres. Por outro lado, essas estudantes, possivelmente por essas condições específicas, revelam reflexão crítica e mais criteriosa da sua formação. Suas trajetórias às conduzem para caminhos alternativos aos já estruturados: estão inseridas em movimentos sociais, feministas e/ou estudantil. Fazem parte desse grupo, as/os únicas/os entrevistadas/os que citaram ‘saúde pública’, ‘vigilância sanitária’ e ‘agroecologia’ como áreas de escolha para atuar. Justificam a motivação pela relação com a saúde humana e observam que são áreas de pouco interesse no curso, principalmente por não serem ‘rentáveis’. Apontamos a necessidade de reformulações curriculares valorizando campos de saberes que ampliem as perspectivas individual, curativa e produtivista que predominam na formação. Para além do estímulo à formação como processo transformador, produzindo profissionais que reconheçam e se comprometam com a redução das desigualdades, o curso também precisa se repensar enquanto espaço de reprodução de opressões.
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