01/11/2023 - 13:10 - 14:40 CO4.1 - Modos de viver das pessoas em situação de vulnerabilidade |
47591 - A (DES) CONSTRUÇÃO DA VÍTIMA INOCENTE: REFLEXÕES SOBRE A ECONOMIA MORAL DA INOCÊNCIA NAS EXPERIÊNCIAS MICROPOLÍTICAS, LOCAIS E COMUNITÁRIAS FATIMA REGINA CECCHETTO - FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ, JACQUELINE DE OLIVEIRA MUNIZ - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Apresentação/Introdução Este texto aborda a construção da categoria vítima inocente. Trata-se de um relato de pesquisa em andamento desde 2017 com juventudes dos espaços populares, policiais e guardas municipais do Rio de Janeiro. As reflexões estão orientadas pela discussão sobre a categoria vítima inocente como uma tecnologia moral capaz de produzir a adesão de quem o escuta. A inocência precisa ser acionada pelos familiares para tornar público o “pior momento de suas vidas”, no qual o sofrimento e indignação pela perda de parente inocente motivam a decisão de “lutar por justiça”. A denúncia dos familiares é a primeira ação para reintroduzir a cidadania da vítima inocente como sujeito de direito, na rota certa do reconhecimento público e reparação judicial como mostra os casos de kathleen Romeu, João Pedro, Ágata entre outros.
Objetivos Evidenciar as moralidades que incidem sobre as vítimas de mortes violentas praticadas por agentes do estado ou grupos criminosos. Tenciona-se interpretar as narrativas sobre as vítimas enquanto ato político. Problematiza-se a instrumentalização da antinomia inocência e culpa como uma estratégia por meio do qual os familiares tornam-se vozes legítimas na “luta por justiça”.
Metodologia Utiliza-se o aporte sócioantropológico para a realização de trabalho de campo etnográfico em favelas cariocas e ainda do levantamento de fontes documentais e jornalísticas na internet sobre Operações Policiais.
Resultados e discussão Na economia moral da vítima, a vítima inocente é a personagem com importância política. Ela é um agente moral de primeira ordem. No mundo dos direitos políticos e da cidadania, esse tipo de vítima encontra-se num patamar elevado na escala de moral. Seu lugar impõe a elaboração de uma narrativa de consenso: “não fez nada para merecer morrer”. Isso a qualifica para transitar em um bloco único, em um lugar protegido, dos sacrificados. Está apartada de outros corpos não suscetíveis de receber essa denominação. As mulheres, sobretudo as mães das vítimas, assumem o direito de “lutar”, de “fazer alguma coisa” para que aquelas violências sejam interrompidas e para que a memória de seus seja preservada, através do reconhecimento de sua inocência. As narrativas sobre a morte do inocente representam uma ação política que funciona como um ato de cura. Para ser eficaz, essas narrativas devem acionar uma gramática moral da inocência. A inocência torna-se um modo de reconhecimento jurídico e propicia uma política de compaixão pelo sofrimento alheio. A vítima inocente passa então a ter agência como um ator que atua para ser reconhecido e que para isso mobiliza recursos materiais e simbólicos, (pena, compaixão, raiva) via familiares e outros especialistas que os arma de argumentos para conceder o devido reconhecimento no espaço público.
Conclusões/Considerações finais A vítima inocente é uma caracterização sociológica, uma forma de comunicar publicamente a condição de sofrimento intenso e fazer dessa marca a base para a reivindicação de reconhecimento em oposição a outros tipos vitimizações não aceitáveis. Por isso a vítima inocente, em oposição aos mortos com merecimento por envolvimento com o crime afirma-se como uma identidade positiva que a coloca em um espaço interposto pela cidadania. Entre vítima inocente e o cidadão ordinário não há distinção; a inocência e cidadania se fundem. A diferença se dilui pelo contraste com a culpa, “o fez por merecer” de outras vítimas, seu espelho invertido. Como uma vítima “extraordinária”, a vítima inocente se localiza em um ontologia oposta, a do bandido, a do envolvido, a do marginal, vítima corriqueiras, destituídas de cidadania. O azar ou fatalidade que recai sobre a vítima inocente , a coloca como um agente proativo do resgate de sua cidadania e reforça sua condição como um agente moral universal capaz de articular comunidade e sentido. Esse tipo de vítima, estaria como que fora, habitando as bordas exteriores do problema da mortes, das violações nos espaços populares. É tratada como um resíduo ou uma consequência não intencional das ações dos governos criminais e policiais. Seu lugar com efeito é do mártir ou do herói, cidadão com letras maiúsculas, santificado; é uma excepcionalidade pela fatalidade. Essa antinomia das vítimas ajuda a repensar as ferramentas teóricas e metodológicas para analisar as paradoxos e contradições da economia moral das vítimas; ajudar a refletir sobre os limites do intolerável. Possibilita compreender os mecanismos utilizados para estabelecer hierarquias entre as categorias de humanos e os menos humanos ou vidas que nem sequer merecem ser vividas. Em sua dimensão ideológica, de signo humanitário, essa antinomia das vítimas põe em circulação um sentido moral que mobiliza militâncias e sensibilidades políticas em relação às vítimas de sobrenome inocente; é uma poderosa tecnologia moral que produz reivindicações por justiça, verdade e proteções jurídicas.
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