Comunicação Oral

01/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO12.1 - Epistemologias da Saúde desde o Sul: Pensamento crítico latino-americano e a virada decolonial

47878 - ASPECTOS DE COLONIALIDADE DA PROPRIEDADE INTELECTUAL RELACIONADOS À SAÚDE: REFLEXÕES DESDE E PARA O SUL GLOBAL
LUCIANA DE MELO NUNES LOPES - UFMG, ELI IOLA GURGEL DE ANDRADE - UFMG, ELIS MINA SERAYA BORDE - UFMG


Apresentação/Introdução
Mesmo após a independência política das colônias, a colonialidade segue sendo um pilar do atual padrão mundial de poder, configurado como a trama colonialidade-capitalismo-eurocentrismo. Se a colonialidade é arquitetada para ser despercebida, momentos de crise podem contribuir para revelá-la. Na pandemia de Covid-19, parece ser precisamente isso o que tem acontecido com o sistema global de propriedade intelectual (PI). Sua lógica colonial tem sido denunciada a partir da escandalosa iniquidade de acesso entre o Norte e o Sul Globais às tecnologias em saúde anti-Covid-19 e nos debates e decisões para contornar o problema.


Objetivos
Este trabalho visa a apresentar elementos que contribuam para a sustentação de uma hipótese comumente intuída no âmbito do chamado “movimento global pelo acesso a medicamentos” (MAM), mas ainda pouco sistematizada: a de que o sistema vigente de PI se configura como expressão e dispositivo de colonialidade para a saúde dos povos.


Metodologia
Assente em experiências do campo da saúde, desenvolvimentos teóricos sobre o capitalismo cognitivo e no pensamento decolonial latino-americano, este trabalho constitui-se em um esforço investigativo de revisão narrativa da literatura que apresenta e reflete sobre o histórico de instituição do sistema global vigente de propriedade intelectual, seu impacto negativo na saúde e sobre iniciativas do MAM para mitigá-lo.

Resultados e discussão
À luz do capitalismo cognitivo e do pensamento decolonial latino-americano, a instituição do sistema global atual de PI apontam-na como uma estrutura global eurocêntrica e capitalista de manutenção e avanço da colonialidade, especialmente em sua atual fase de domínio das corporações e de uma política de consumidores-empresários da própria saúde, evidenciada na Covid-19. O desenvolvimento dos mecanismos de monopólio sobre as ideias (posteriormente agrupados como PI) ocorreu ancorado ao eurocentrismo, com definições de conhecimento, invenção ou inovação a partir de uma racionalidade específica, que separa a “razão/sujeito” do corpo e da natureza e trata esses últimos como objeto de estudo e fonte de recursos. A expansão da PI aparenta estar intimamente relacionada à concepção de superioridade do “intelecto” eurocêntrica. Assim como a imposição de mudanças na forma de conceber a terra enquanto bem comum e dela apropriar-se foi essencial para a colonização da América e o surgimento do capitalismo, o mesmo movimento ocorreu com relação às ideias ao longo da modernidade, chegando ao ápice no capitalismo cognitivo. Nessa etapa, o papel desempenhado pelo sistema global de PI na periferia ao resguardar monopólios resulta em transferência de riquezas do Sul para o Norte Global, como no colonialismo. Isso é evidenciado na pandemia de Covid-19, quando os discursos de solidariedade global ganham invólucro de caridade para com os países do Sul, com incentivo a doações e iniciativas como a Covax, que valorizam e dependem da boa vontade do Norte Global, e até de empréstimos a países já endividados para a compra de tecnologias dos países ricos. Assim, além de garantir sua imunização, o Norte Global garantiu o surgimento de nove bilionários das vacinas. Já o TRIPS waiver, iniciativa do Sul Global que reforça o papel da PI enquanto estrutura determinante da possibilidade dos povos assegurarem seu direito à saúde e à vida e que propunha, de fato, uma intervenção estrutural – ainda que temporária –, foi duramente combatida.


Conclusões/Considerações finais
Apesar da centralidade da PI para a atual etapa capitalista, a colonialidade contribui para que seus conflitos sejam ocultados e seu enfrentamento seja marginalizado, inclusive por defensores do direito à saúde. Narrativas hegemônicas como as da inovação, da sociedade do conhecimento, do desenvolvimento, etc., tecem uma roupagem de neutralidade: o problema não seria a PI, em si, mas seu uso abusivo. Entretanto, analisada pelas lentes aqui propostas, refletimos que, apesar de disfarçada de “direitos”, trata-se de uma instituição construída sobre uma lógica de colonialidade – de competição, hierarquização e exclusão. A intensificação do embate à PI e a popularização do debate em meio à pandemia de Covid-19 apontam para uma janela de oportunidade para o MAM avançar sua luta. Mas para avançar a decolonialidade, o Sul Global bem como o MAM devem ousar sonhar um mundo sem monopólios farmacêuticos.