Comunicação Oral

01/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO16.1 - Temas de Saúde Reprodutiva

46060 - TRANSPLANTE UTERINO NO BRASIL: UMA ANÁLISE DE PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS
JULIANA RODRIGUES VIEIRA - UERJ - IMS, ROGERIO LOPES AZIZE - UERJ - IMS, MARINA FISHER NUCCI - UERJ - IMS


Apresentação/Introdução
Em 2016, um acontecimento científico no Brasil ganhou notoriedade ao redor do mundo: o primeiro caso de nascimento após um transplante uterino. Além da gestação, de um artigo publicado no The Lancet pelos pesquisadores e muito capital científico envolvido, o procedimento de caráter experimental gerou também debates importantes sobre o tema – do imenso fascínio biotecnológico a duras críticas éticas. O procedimento – voltado para mulheres que nasceram sem útero ou que realizaram histerectomia – já ocorreu em outros países, mas o Brasil foi pioneiro ao utilizar o útero de uma doadora falecida e por ter alcançado um nascimento após o transplante. Por tais feitos, o caso brasileiro é apresentado como um “caso de sucesso”.

Objetivos
O artigo mencionado foi a pista inicial para uma pesquisa mais ampla sobre o tema do transplante uterino em diversas frentes, com o objetivo de identificar, compreender e analisar os sentidos sociais e os valores que cercam este procedimento. Neste trabalho, o objetivo foi identificar e analisar artigos científicos que vêm sendo publicados no Brasil e no mundo, que abordam o caso do transplante uterino realizado por uma equipe de pesquisa/médica brasileira. Analisamos como estes discursos - que apresentam e discutem casos de sucesso, atividades clínicas e variações nas técnicas do procedimento - se constituem, como se alinham em termos políticos, éticos e científicos no campo das novas tecnologias reprodutivas, e as controvérsias mais ou menos explícitas entre diferentes grupos de pesquisadores.

Metodologia
A partir de um N inicial de 40 publicações, selecionamos 13 artigos para análise, por sua grande relevância no campo médico-científico e por discutirem o caso do transplante uterino no Brasil. Os documentos foram localizados no PudMed, ferramenta de busca online que acessa o banco de dados da Medline (Medical Literature Analysis and Retrieval System Online), e BVS (Biblioteca Virtual em Saúde) através da combinação entre os termos “Transplant”/“Transplantation”, “Uterus”/“Uterine” e “Brazil”.



Resultados e discussão
A partir disso, partimos da perspectiva dos estudos sociais da ciência que encaram o discurso científico não enquanto um fato neutro, mas uma representação da realidade dotada de contradições, atravessada e produzida por interesses sociais, econômicos e políticos. Enquanto um artefato cultural, as verdades científicas desvelam uma série de articulações sobre as relações entre gênero, sexualidade e poder. Diante disso, pensamos a anatomia não como uma verdade inquestionável, mas, sobretudo, como uma construção histórica, provisória e parcial.
Identificamos um crescimento significativo das publicações dos últimos 10 anos, o que nos parece ser animado pelos resultados considerados positivos dos ensaios clínicos que vêm sendo conduzidos. Tratando-se de uma tecnologia ainda experimental, os artigos tendem a recuperar o que nos soa como os mitos de origem do procedimento, recuperando historicamente as primeiras tentativas de transplante, as técnicas utilizadas e aplicando o principal critério de sucesso da cirurgia, o feto nascido vivo – ainda que a noção de sucesso seja utilizada em alguns contextos sem essa consequência, para se remeter aos procedimentos cirúrgicos em si.
Os artigos tendem a um ufanismo científico que apresenta o procedimento como um “impressionante progresso científico”, o “começo de uma nova era” e outros termos que apontam para uma revolução na lida com questões de tecnologia reprodutiva. O transplante é apresentado também como uma possibilidade de esperança a mulheres sem útero, que finalmente poderiam experienciar o “sonho de vivenciar uma gravidez”. É constante também o debate sobre a dimensão ética deste tipo de “transplante efêmero”, uma novidade no campo do transplante de órgãos, já que o útero transplantado é retirado logo após o nascimento do bebê. Nesta direção, o debate envereda para os limites de intervenções que não tem como objetivo a extensão da vida, lançando mão do valor – sempre algo nebuloso – da “qualidade de vida”.


Conclusões/Considerações finais
O aumento algo recente das publicações justifica a relevância da nossa discussão e aponta para um futuro próximo de ainda maior visibilidade para este fenômeno. A análise dos artigos aponta para uma noção de natureza enquanto algo instável que precisa ser produzida ou assegurada pela medicina. Tal aspecto coloca em voga um tensionamento entre noções de natureza e artifício, que vislumbra outros caminhos para as denominadas “novas tecnologias reprodutivas”. A escolha pela maternidade e um aparente desejo coletivo para que seja um processo biológico desenvolvido dentro do próprio corpo destacam um uso da ciência que se ancora em argumentos morais e essencialistas. A problemática que se coloca nessa distopia, para alguns, e utopia, para outros, nos remete aos limites borrados entre natureza e cultura e ao valor atribuído neste contexto à “experiência de uma gestação” (termo êmico).