Comunicação Oral

01/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO20.1 - Direitos reprodutivos: aborto e contracepção

46253 - CREDIBILIDADE PÚBLICA, SABERES LOCALIZADOS: DISPUTA EPISTÊMICA SOBRE O DISPOSITIVO ESSURE NO DISTRITO FEDERAL
ANA CAROLINA LESSA DANTAS - UNB


Apresentação/Introdução
As decisões e os procedimentos que circundam a esterilização permanente – uma das formas de contracepção mais acessadas no Brasil – são temas clássicos nas investigações de justiça reprodutiva (BRANDÃO, CABRAL, 2021). Nos anos 2010, um novo agente se tornou objeto de estudo deste campo: o dispositivo contraceptivo Essure, implantado em milhares de mulheres brasileiras, em onze diferentes estados da federação.
O Essure é uma forma de anticoncepção permanente, composta por um kit de molas metálicas da espessura de um fio de cabelo. De acordo com a fabricante Conceptus Inc. – adquirida pela Bayer em 2013 –, as molas deveriam ser inseridas no interior das tubas uterinas através do canal vaginal. Uma vez posicionadas, elas provocariam uma reação de cicatrização controlada, levando o corpo a ocluir completamente as tubas e, consequentemente, a impedir o encontro entre espermatozóide e oócito (BRASIL, 2021).
Embora não tenha sido adquirido de forma centralizada pelo Sistema Único de Saúde, o Governo do Distrito Federal - GDF comprou 4.673 unidades do kit para implantação do Essure (BRASIL, 2019). Cerca de 600 desses kits foram destinados aos Mutirões de Laqueaduras Tubárias, organizados pela Secretaria de Saúde do DF - SES em 2012 e em 2013, e parte do restante seguiu sendo inserido em hospitais públicos até 2016.
As controvérsias em torno do dispositivo começaram quando, após a implantação, uma série de mulheres procurou os serviços de saúde para relatar sintomas – de queda de cabelo a sangramentos intensos e ininterruptos – possivelmente associados ao Essure. A recepção destas queixas pela SES, contudo, não foi acolhedora: a narrativa das mulheres foi desacreditada, contemporizada e, em alguns casos, respondida com insultos verbais. Como forma de estabelecer uma rede de acolhimento e de reivindicar um tratamento digno do Estado, as pacientes afetadas criaram a Associação de Mulheres Vítimas do Essure Brasil - AMVEB.
Meu primeiro contato com o caso aconteceu em 2021, através da atuação coletiva do Cravinas - Clínica Jurídica em Direitos Sexuais e Reprodutivos da Universidade de Brasília. Desde então, sigo investigando a mobilização política em torno do Essure enquanto doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB.

Objetivos
Neste trabalho, tento compreender uma dimensão desse caso, a saber, a produção e a legitimação de conhecimento público a respeito do Essure.

Metodologia
Parto da análise de documentos produzidos pela SES e pela AMVEB, bem como de dois eventos transmitidos virtualmente: uma Audiência Pública da Câmara Legislativa do Distrito Federal, promovida pelo deputado distrital Fábio Félix (PSOL) em 26 de abril de 2021, e uma mesa redonda intitulada Manhã de Conhecimento, organizada pelo Instituto Todde/Todde Advogados e Consultores Associados, em 5 agosto de 2022.

Resultados e discussão
Durante a análise proposta, identifico que a relação de confiança que as pacientes do Essure tinham com a SES foi sendo desgastada em razão de episódios reiterados de assédio moral e de exclusão discursiva (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2020). Além de tratá-las como “loucas” e “desocupadas”, profissionais da Secretaria sugeriram que as mulheres vítimas eram adeptas de um tipo de anticientificismo.
Classifico esses episódios como casos de injustiça epistêmica (FRICKER, 2007), cuja raiz está ligada à desconsideração das mulheres vítimas enquanto sujeitos dignos de credibilidade epistêmica. Neste contexto de violação de direitos e de quebra de confiança com as instituições de saúde, a AMVEB surge não apenas para oferecer acolhimento às mulheres, mas para contestar a posição de neutralidade técnico-científica reivindicada pela SES.
As mulheres que foram convocadas para os Mutirões de Laqueaduras Tubárias são mães, trabalhadoras e moradoras das periferias do Distrito Federal. Seus corpos estão marcados pela particularidade não só do gênero, mas também da raça e da classe. Elas informam sobre o problema corporificado, o “dispositivo no corpo”, bem como sobre as formas de lidar com ele (cf. KIDD, CAREL, 2017). Quando colocada no debate público, esta forma de saber localizado, para usar o termo de Donna Haraway (1995), tensiona as relações epistêmicas estabelecidas até então.
Proponho que este tensionamento não enfraquece a posição científica, mas a qualifica.

Conclusões/Considerações finais
A compreensão do que o Essure é – das consequências que ele provoca, das relações que ele estabelece – não pode prescindir de análises multidimensionais. Confiar na perspectiva parcial, marcada pela particularidade, das mulheres vítimas talvez seja o único modo de chegar à visão objetiva do problema.
Por fim, embora esta perspectiva não seja trabalhada a fundo aqui, acredito que o conflito epistêmico no caso Essure abre caminhos para pensar a relação indissociável entre justiça epistêmica e justiça reprodutiva, possibilitando reflexões sobre a múltiplas formas em que conhecimento científico, saberes “leigos” e reprodução se interseccionam.