46224 - MULHERES INDÍGENAS DO ALTO RIO NEGRO E A SAÚDE PÚBLICA: SOBRE COSMOPOLÍTICAS DO CUIDADO, SAÚDE E NATUREZA NA PANDEMIA DE COVID-19 JÚLIA KAORI MIAI TOMIMURA - FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA/UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (FSP-USP), JOSÉ MIGUEL NIETO OLIVAR - FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA/UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (FSP-USP)
Apresentação/Introdução A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas busca garantir a pessoas indígenas atenção integral à saúde, contemplando a diversidade social, cultural, histórica e política, a eficácia de sua medicina e o direito à sua cultura (BRASIL, 2002). Uma de suas diretrizes fundamentais é a atenção diferenciada que busca reconhecer a multiplicidade de formas de cuidado, pois “ofertar atenção diferenciada significa colocar em interação diferentes visões de mundo em disputa” (PONTES et al., 2015). Na perspectiva da “virada ontológica”, não somente diferentes visões de mundo, mas diferentes ‘mundos’ são colocados em conexão, resultando em convergências, alianças, conflitos e desentendimentos (DE LA CADENA, 2019). Assim, evocamos os conceitos de cosmopolítica (Stengers, 2018) e pluriverso (de la Cadena & Blaser, 2018): saúde não é uma noção única, evocá-la no mundo branco não é a mesma coisa que nos mundos indígenas. A pandemia de Covid-19 e suas reelaborações sociopolíticas desenham novas flexões para pensarmos mundos, fim-do-mundo e de mundos (KRENAK, 2019; FERREIRA DA SILVA, 2019), afetando mais violentamente pessoas em maior vulnerabilidade social, através de políticas de morte intensificadas durante o governo Bolsonaro, como no caso da região amazônica sob mira do dispositivo formado pela combinação do vírus, epidemias já recorrentes, respostas institucionais e negacionismo (OLIVAR, MELO & TOBÓN, 2021). Este trabalho debruça-se na mobilização de mulheres indígenas do Alto rio Negro (AM), fronteira com Colômbia e Venezuela.
Objetivos O objetivo desta iniciação científica é analisar materiais produzidos pela Equipe Norte Amazônico da pesquisa Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 (PARI-c) entre 2020 e 2021, sendo 4 notas de pesquisa e 1 estudo de caso situados no Alto rio Negro. Buscou-se compreender cuidado e resistência como produção de saúde, de modo a traçar contribuições para um pensamento decolonial e intercultural no campo da Saúde Pública, tensionando aberturas onto-epistemológicas. Esta pesquisa parte de uma perspectiva cosmopolítica e pluriversal, atravessada por noções e relações de natureza e cuidado.
Metodologia O trabalho é uma pesquisa teórica, orientada pela Antropologia em diálogo com a Saúde Pública. Maior parte da pesquisa foi dedicada à busca bibliográfica aberta relacionada a propostas de transformação decolonial e cosmopolítica da Saúde Pública. A busca concentrou-se em produções dentro do marco teórico do fim-do-mundo e da virada ontológica através de referências europeias e, principalmente, de autoras indígenas do Brasil, visto a forte vinculação saúde-terra. Duas destas autoras são pesquisadoras indígenas do Alto rio Negro que fortemente articularam ações e alianças desde o início da pandemia, sendo escolhido parte do material produzido junto a/por elas pela PARI-c para ser o foco de análise. Por fim, a busca foi em direção ao campo da Saúde Indígena, entendendo a relação com o material escolhido e os temas já percorridos.
Resultados e discussão As bases modernas da Saúde Pública são vinculadas a uma ideologia colonialista em prol de progresso e civilização que busca padronizar corpos e modos de viver, suprimindo a diversidade do que entendemos aqui como múltiplos mundos e transformando-os em um Mundo Único. A partir disto, os povos indígenas no Brasil durante a pandemia de Covid-19 sofreram diversos ataques por meio de ações necropolíticas e etnocidas, como uma atualização dessa colonialidade (COSTA, 2021). O protagonismo das mulheres indígenas do Alto rio Negro fez frente a tal cenário, entrelaçando conhecimentos de muitos mundos como: uso de máscara, arrecadação de alimentos e produtos de higiene, distanciamento físico, preparo de infusões, defumações e benzimentos (COSTA, 2021; FONTES, 2021). A mobilização dessas mulheres foi uma estratégia de resistência e produção de vida, permeada por uma compreensão de cuidado inseparável da natureza, exorbitante às dicotomias modernas, como Humanidade versus Natureza (DE LA CADENA, 2019; KRENAK, 2019; ANGATU, 2021).
Conclusões/Considerações finais Costa et al. (2021) ressaltam que, apesar do cenário epistemicida, os corpos e os saberes persistem, e foi esta resistência que possibilitou passar pelo fim-do-mundo pandêmico. Não podendo contar com o poder público enquanto aliado, a intervenção das mulheres rionegrinas foi a estratégia para lidar com a pandemia, para cuidar e resistir, formando alianças e conectando conceitos científicos e globais às sabedorias ancestrais dos povos indígenas da região, podendo ser entendida como uma "cosmopolítica do cuidado" (OLIVAR et al., 2021; FURQUIM, 2022): uma tecnologia de cuidado que faz existir os mundos e quem os habita, sem a pretensão de unificar, mas considerando a multiplicidade envolvida, sejam por semelhanças, articulações ou divergências. Esta experiência pode ser um disparador de novas aproximações e deslocamentos no campo da Saúde Pública, podendo também estruturar e fortalecer políticas que promovam saúde de fato seguindo a diretriz de atenção diferenciada.
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