Comunicação Oral

01/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO25.1 - Saúde mental, determinantes sociais e práticas emancipatórias

47228 - A DÁDIVA E O CUIDADO INTEGRAL DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: UMA RELEITURA DOS CORPOS DESSES SUJEITOS VULNERABILIZADOS
ALDA LACERDA - EPSJV/FIOCRUZ


Apresentação/Introdução
O número crescente da população em situação de rua em todo o território nacional é o retrato do grau máximo de reprodução das desigualdades e das iniquidades sociais, frutos de políticas de exploração social e de sistemas econômicos de acumulação do capital. São pessoas à margem da sociedade, vulnerabilizadas, estigmatizadas, cujos corpos refletem a interdependência, apontada por Marcel Mauss (2003 [1934]), entre os domínios físico, psicológico, social e cultural. A violência que sofrem e a repulsão e o nojo das pessoas que evitam o contato e os fazem se sentir o “lixo” da sociedade estão marcadas em seus corpos. A violência cotidiana e a violação da saúde como direito se exacerbam e estão muitas vezes presentes nas práticas dos profissionais de saúde que negam a atenção e cuidado das pessoas em situação de rua por não terem documentos de identificação. Tendo em vista a importância das relações intersubjetivas e as trocas entre profissionais e usuários, é fundamental a construção de políticas e práticas de saúde e que valorizem os sujeitos e a dádiva como produtora de cuidado integral.

Objetivos
O Objetivo do presente trabalho é discutir formas viáveis de cuidado integral das pessoas em situação de rua, tendo como centralidade a dádiva e a releitura dos corpos desses sujeitos vulnerabilizados.

Metodologia
Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, voltada para as pessoas em situação de rua. No período de 2014 a 2018 foram realizadas 17 entrevistas semiestruturadas com pessoas em situação de rua nos municípios do Rio de Janeiro (n=10) e de São Paulo (n=7), sendo 10 do gênero masculino e 7 do gênero feminino, com faixa etária de 20 a 42 anos. Foram também realizados dois grupos focais, um no Rio de Janeiro com 5 pessoas e outro em São Paulo com 9 pessoas, totalizando 14 participantes. O critério de inclusão era ser maior de 18 anos, estar em situação de rua há pelo menos 1 ano e ser atendido ou estar cadastrado nas equipes de Consultório na Rua.
O material foi analisado por meio software de análise qualitativa Atlas-ti. Embora a coleta de dados tenha finalizado em 2018, o presente trabalho é original. São reflexões recentes que trazemos a partir do material coletado e que contribuem para ampliar o debate sobre a integralidade do cuidado das pessoas em situação de rua, a compreensão de seus corpos físicos, emocionais e socioculturais e a importância da dádiva como constituinte do cuidado integral.


Resultados e discussão
A integralidade do cuidado das pessoas em situação de rua pressupõe a compreensão que seus corpos trazem as marcas das experiências vivenciadas e revelam a opressão, o sofrimento e adoecimento individual e coletivo, o isolamento, o abandono e o esgarçamento das relações sociais, mas também a pulsão da vida que se concretiza por meio da circulação de bens materiais e simbólicos que se constituem como dádivas. Ações dos profissionais do Consultório na Rua, tais como cortes de cabelo; distribuição de produtos básicos de higiene; acompanhamento nos exames ou consultas com especialistas; auxílio para alimentação e para obter a documentação pessoal, ampliam a produção do cuidado integra e evidenciam a presença da dádiva. São práticas de saúde viáveis pautadas no cuidado ético-político e na dádiva, com a circulação de afetos, de emoções, de confiança e de reconhecimento social, e que propiciam outras formas de releitura e cuidado dos corpos desses sujeitos vulnerabilizados.

Conclusões/Considerações finais
O corpo das pessoas em situação de rua não é simplesmente um corpo passivo e frágil, mas um corpo que traz histórias de lutas, resistências e enfrentamentos. As experiências vivenciadas com a circulação da dádiva estão inscritas nos corpos e revelam tanto o desrespeito como o reconhecimento social. Se por um lado os corpos demonstram o sofrimento e a desconfiança, por outro revelam a confiança e a pulsão da vida que os movem na luta por seus direitos de cidadania. Uma releitura dos corpos físicos, sociais e culturais desses sujeitos propicia uma nova compreensão e reafirma a necessidade de se contrapor às práticas de saúde e políticas conservadoras e colonizadoras voltadas para a internação compulsória e o controle dos corpos. É urgente e necessário uma reconstrução crítica para de fato formularmos e implementarmos políticas de afeto e de emancipação social com práticas de saúde que incluam a dádiva como elemento estruturante do cuidado ético-político.