Comunicação Oral

01/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO29.1 - Discursos científicos pandêmicos e os paradoxos que nos rondam

46372 - MEMÓRIA, CENÁRIO E ACONTECIMENTO DISCURSIVO: UMA ANÁLISE SOBRE A AGENDA “LETALIDADE DA COVID NA POPULAÇÃO NEGRA" NAS REDES
WEDENCLEY ALVES SANTANA - UFJF


Apresentação/Introdução
Na manhã do dia 10 de junho de 2020, o portal Uol noticiaria uma medida de censura federal: o relatório Vigitel Brasil 2018 População Negra era retirado da página do Ministério da Saúde, embora outros estudos sobre a população em geral pudessem ainda ser consultados. O levantamento trazia estimativas sobre “frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas para a população negra”. A mesma matéria do portal, assinada pelo jornalista Rubens Valente, trazia informações adicionais sobre o processo que culminaria no expurgo do documento, a começar pela extinção do departamento responsável pela política nacional de saúde voltada para “populações negra, do campo e da floresta, de gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e travestis, ciganos, população em situação de rua e outros”. Alguns servidores do Ministério ouvidos pelo portal apontavam que a determinação do Governo era a de abandonar qualquer “política identitária” na esfera federal a começar pela pasta da Saúde. A medida censora fora anterior, e a imprensa não conseguira estabelecer exatamente o momento da iniciativa. Informações davam conta de que já em abril o estudo não constava mais na página. Dois meses antes, o Brasil era alcançado pela pandemia que já assustava o mundo.

Objetivos
O presente estudo parte desse marco temporal, o dia em que a censura ao documento veio à tona, por meio da imprensa, para analisar o cenário discursivo que se constitui a partir de então sobre a saúde da população negra em meio à Pandemia de Covid 2019. Cenário este constituído por discursos institucionais (governamentais), científicos, jornalísticos e cotidianos, localizados em rede. Esses discursos estabelecem linhas de força e contraste, interagindo em relação sintagmática, e constituindo cenas e intrigas narrativas que levam à ressignificação do acontecimento pandêmico, em sua aparente uniformidade de efeitos: todos estavam em risco, mas alguns estavam mais em risco do que outros.


Metodologia
Ao todo foram analisadas 26 matérias jornalísticas, publicadas em rede por dez veículos, três relatórios científicos noticiados em páginas institucionais de universidades e fundações de pesquisa (do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, da PUC-Rio, do Instituto Poli, e do CNS /e CNDH) e, também, reproduzidos na imprensa, artigos científicos, com significativa circulação em rede, e quatro comunicados em páginas governamentais. Do ponto de vista analítico discursivo, o princípio da saturação nos desobriga a pretender um levantamento exaustivo de todo o arquivo posto em circulação durante o período considerado – de março de 2020 a março de 2022 – porque as matrizes de sentido – ou regularidades – acabam por se repetir em que pese a diversidade material.


Resultados e discussão
O estudo revela que o ato de censura governamental estabeleceu-se como um contraponto solitário à emergência de um debate que acabou por se instituir na agenda pública de discursos sobre a Covid, embora, de maneira alguma, podemos afirmar que tenha se tornado hegemônica. Mas identificamos nesse cenário o acontecimento discursivo da entronização de uma pauta muitas vezes restrita a produções acadêmicas e ativistas. Pensa-se aqui o acontecimento discursivo como deslocamentos produzidos a partir de uma memória, entendida como rede de paráfrases que, na questão em estudo, quase sempre resultava em apagamento dos discursos sobre as especificidades da saúde da população negra. Só é possível afirmar-se um acontecimento discursivo em relação ao referencial de uma memória discursiva constituída historicamente, acontecimento que se materializa num contexto de atualidades (ou cenário discursivo, conceito por nós proposto).

Conclusões/Considerações finais
O acontecimento da covid e a alta letalidade em populações negras poderiam ou não resultar em maior circulação de discursos sobre a iniquidade entre raça e etnia no contexto pandêmico, mas podemos inferir que o próprio discurso governamental (federal), seus posicionamentos administrativos e ações ou inações, produziu um rearranjo de posições no debate público, aproximando estudos científicos, ativistas e imprensa em geral.