Comunicação Oral Curta

02/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC16.3 - Atenção à Saúde Sexual e Reprodutiva: desigualdades e estigma

46110 - MULHERES QUE NÃO DESEJAM SE TORNAR MÃES: INIQUIDADES RACIAIS NO ACESSO AO PLANEJAMENTO REPRODUTIVO
CAMILA REBOUÇAS FERNANDES - IFF/FIOCRUZ


Apresentação/Introdução
O Brasil vem passando por um processo de transição demográfica, apontando para uma nova tendência reprodutiva, que põe em xeque o modelo de família cuja mulher-mãe é figura fundamental. Entre 1940 e 1960, havia uma média de pouco mais de 6 filhos por mulher (IBGE, 2002). Em quase 80 anos, as taxas de fecundidade no Brasil tiveram um declínio de aproximadamente 4,23, chegando a 1,77 em 2018 (IBGE, 2019). Especialmente entre os anos 90 e 2000, com a lei do planejamento familiar, nº 9263 (BRASIL, 1996), tornou-se significativa a queda nas taxas de fecundidade de mulheres de todas as categorias étnico-raciais (IBGE, 2003). Contudo, cabe problematizar que as mulheres não acessam serviços de planejamento reprodutivo de forma horizontal, apontando para a necessidade de realizar esse debate atentando para o marcador social de raça.

Objetivos
O presente trabalho tem como objetivo discutir as iniquidades raciais envolvidas na contracepção de mulheres que não desejam se tornar mães.

Metodologia
Para isso, desenvolve-se uma reflexão teórica, compreendendo que as mulheres não têm as mesmas possibilidades de decidir se tornar ou não mães. Este trabalho, de cunho qualitativo, integra uma pesquisa de doutorado em Saúde Coletiva em andamento, junto a mulheres que afirmam não desejar viver a experiência da maternidade em nenhum momento da vida. Fazendo a revisão bibliográfica para a pesquisa, observa-se que as poucas produções que abordam a não-maternidade como um desejo das mulheres ainda não interseccionam suas discussões, percebendo “a mulher” como homogênea, e não reconhecendo que os marcadores sociais podem impactar (e mesmo determinar) suas trajetórias contraceptivas.

Resultados e discussão
Lélia Gonzalez (2018) sinaliza a lacuna nas publicações sobre a qualidade de vida das populações negras na contemporaneidade, caracterizando a invisibilização do debate racial, com escritas que reproduzem uma lógica colonial e eurocêntrica, o que a autora denomina “racismo por omissão”. As iniquidades que assolam as mulheres negras no planejamento reprodutivo expressam realidades que se forjaram na objetificação e na desumanização de seus corpos. Angela Davis (2016) e bell hooks (2019) ressaltam que, historicamente, mulheres negras não foram incentivadas à maternidade como as mulheres brancas; durante o período escravagista, mulheres-mães negras sequer eram reconhecidas como mães, mas como reprodutoras de força de trabalho (DAVIS, 2016). Apesar de retratarem a realidade norte-americana, as análises das autoras são importantes para discutir as realidades de outros países cujas populações negras foram escravizadas, como é o caso do Brasil.
A antropóloga Andrea Alves (2014) aponta que no Brasil pós-ditadura, década de 80, as políticas de controle de natalidade que objetivavam o “desenvolvimento” do país chancelaram a esterilização em massa de mulheres negras e empobrecidas e a disponibilização de seus corpos para usos de métodos anticoncepcionais em fase de testes – práticas conduzidas por médicos, enfermeiras e assistentes sociais. Mesmo após o reconhecimento do planejamento reprodutivo como um direito (BRASIL, 1996), a desumanização das mulheres negras nos serviços de saúde se reflete no racismo institucional, fazendo com que esse público acesse menos esses serviços e acabe por administrar anticoncepcionais sem orientações profissionais, gerando prejuízos para sua saúde e baixa eficácia contraceptiva (SCAVONE, 2001b).
Para mudar esse cenário, em 2013 foi lançada a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra – PNSIPN (BRASIL, 2013), reivindicando a incorporação de pautas raciais em diversas esferas da saúde: morbimortalidade materna e infantil; IST/HIV/Aids; câncer de colo uterino e de mama; assistência ginecológica, obstétrica, no puerpério, em situações de abortamento e no climatério. A política não aborda contracepção de forma direta. Apesar de contemplar “qualificação e humanização na assistência ginecológica” (p.33) como uma de suas estratégias, o termo “assistência ginecológica” remete à biologia e parece não dar conta dos elementos sociais, econômicos, políticos e culturais implicados no planejamento reprodutivo.

Conclusões/Considerações finais
As discussões teóricas ainda tendem a invisibilizar as realidades contemporâneas das populações negras, as políticas existentes não têm dado conta de incorporar de forma plena as pautas raciais na saúde e os serviços ainda reproduzem práticas racistas. Para reverter essa conjuntura, é preciso que a comunidade científica amplie seu repertório e atente suas discussões para o debate racial. Também é preciso investir em capacitação e qualificação profissional para atendimento integral e humanizado das mulheres negras nos serviços. Além disso, ressalta-se a necessidade de fortalecimento de processos de monitoramento e avaliação das políticas existentes, bem como a formulação e a implementação de novas políticas, que valorizem estratégias e ações voltadas para a viabilização dos direitos reprodutivos das mulheres negras.