Comunicação Oral Curta

02/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC20.1 - Políticas da reprodução e governança reprodutiva

46087 - ABORTO LEGAL EM MENORES DE 14 ANOS NO BRASIL: BARREIRAS INSTITUCIONAIS, SIMBÓLICAS E CULTURAIS
ROBERTA SIQUEIRA MOCAIBER DIEGUEZ - USP, CRISTIANE DA SILVA CABRAL - USP


Apresentação/Introdução
O presente trabalho tem como ponto de partida a divulgação de três casos em portais jornalísticos, que abordam obstáculos enfrentados por gestantes menores de 14 anos ao tentar realizar aborto legal no Brasil. Ao longo dos itinerários abortivos, foram impostas barreiras em diversas esferas, como nas unidades de saúde, no sistema de justiça, no legislativo e no executivo federal. A análise dos casos possibilita discutir a situação atual do aborto legal nessa faixa etária e quais farores podem dificultar o acesso a esse direito, garantido desde o código penal de 1940 em casos de estupro.

Objetivos
Discutir as barreiras de acesso ao aborto legal por menores de 14 anos no Brasil, a partir da análise de três casos tornados públicos pela mídia no país.

Metodologia
Os casos utilizados como base para a discussão, ocorridos no Espírito Santo (2020), Santa Catarina (2022) e Piauí (2023), foram divulgados no Portal Intercept e posteriormente em outros sites jornalísticos. A repercussão das notícias gerou diversos desdobramentos, como a criação de uma CPI pela Assembleia Legislativa de SC e manifestações de órgãos governamentais. Realizamos análise documental de base etnográfica, que considera os documentos como artefatos que ampliam a compreensão do universo que os confeccionou e analisa como produzem significados e organizam pessoas, relações e subjetividades. A análise incluiu notícias (A Gazeta, Agência Brasil, BBC News, CNN Brasil, G1 e Folha de S. Paulo) e documentos emitidos por órgãos oficiais que derivaram destes casos.

Resultados e discussão
Os argumentos em torno da idade gestacional e dúvidas sobre a veracidade do estupro foram largamente mobilizados na construção de narrativas contrárias ao aborto legal, por diversos atores. Hospitais alegaram normativas internas para negar a realização do aborto nos casos com mais de 20 semanas de gestação, referenciando uma norma técnica do Ministério da Saúde (BRASIL, 2012), a qual é infralegal. Importante ressaltar que não há limite gestacional para o aborto nos casos previstos em lei. Em todos os casos, foi solicitada a autorização judicial, o que originou uma trama de controvérsias que atrasou os processos.
A associação do aborto ao infanticídio, o enfoque no sofrimento do “bebê viável” e o incentivo à entrega voluntária em substituição à interrupção da gravidez também foram argumentos acionados. Entretanto, no caso do PI, o acesso foi dificultado desde a descoberta da gestação, então com 12 semanas. Houve fornecimento de informações imprecisas, que superestimavam os riscos do aborto e não consideravam os riscos de manter a gravidez de uma menina de 12 anos. Em SC, a divulgação da notícia de que o outro genitor tinha 13 anos deu ensejo ao questionamento da veracidade do estupro.
Mobilizamos a noção de governança reprodutiva para refletir sobre a disseminação de regimes morais, que agem de modo a regular as escolhas reprodutivas das meninas, impedindo-as de acessar seus direitos. Embora a lei não confira direitos ao feto, essa perspectiva tem estado presente na atuação do judiciário, a exemplo da Defensoria Pública do PI, que designou um defensor para o feto. Além de barreiras morais, a distribuição dos serviços pelo território nacional também é um impeditivo no acesso ao aborto legal, pois exige gastos de deslocamento para quem vive distante dos hospitais de referência. Acrescenta-se às já conhecidas disparidades de classe social no acesso ao aborto, dimensões do racismo institucional e estatal, tal como apontado por Goes (2020). Devido ao segredo de justiça não foi possível identificar dados sobre raça-cor das/os envolvidas/os, o que nos impede de discutir esse aspecto a partir destes casos.


Conclusões/Considerações finais
Ressaltamos a imposição de barreiras institucionais, culturais e simbólicas no acesso ao aborto legal por menores de 14 anos, a partir da mobilização de representantes do executivo, legislativo, judiciário, profissionais de saúde e sociedade civil. A (re)produção de moralidades sobre o aborto têm papel relevante nos processos decisórios que determinam os desfechos dos itinerários abortivos dessas gestantes, que se vêem vulnerabilizadas e violentadas em seus direitos reprodutivos. O excludente de ilicitude de aborto por estupro não tem sido suficiente para garantir o acesso. É igualmente importante considerar o permissivo risco de vida, pois há maior morbimortalidade nas gestações em menores de 16 anos, o que reitera o direito ao aborto nos casos em tela. Os permissivos legais, ainda que fundamentais, não deixam de implicar certa limitação no acesso ao aborto, pois mantém seu status simbólico de crime e abre margem para questionamentos, dúvidas, interferência de crenças pessoais e inseguranças dos profissionais envolvidos.