Comunicação Oral Curta

02/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC20.1 - Políticas da reprodução e governança reprodutiva

46273 - GÊNERO E CUIDADO NA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: O COTIDIANO DE MULHERES CUIDADORAS EM UM CAPS
VANESSA CRUMIAL HERDY DE ANDRADE - UERJ


Apresentação/Introdução
Esta pesquisa se situa no campo da Atenção Psicossocial, composto por múltiplos saberes e instituições, orientados pelo projeto de desinstitucionalização da assistência em saúde mental, garantia de direitos e construção de outras possibilidades de vida com os sujeitos em sofrimento psíquico. Entendendo que esse processo é atravessado pelas dimensões de gênero, raça, classe e território, busco analisar as relações de cuidado na medida em que funcionam como formas de reiteração de normas regulatórias que passam por esses eixos de opressão. A proposta é investigar as formas de gestão do cuidado acionadas pelo mandato da Atenção Psicossocial enquanto práticas sociais, e sua relação com as propostas pautadas pelo movimento da Luta Antimanicomial e pela Reforma Psiquiátrica no Brasil (RPB), especialmente o lugar central ocupado pela família e cuidadores da rede socioafetiva dos usuários no cotidiano de cuidado em saúde mental. Chama a atenção o protagonismo feminino nesses arranjos, que se apresenta tanto na rede de cuidado não técnico, exercido geralmente por familiares e companheiras amorosas, mas também entre as equipes de saúde mental, compostas em maioria por mulheres de categorias profissionais bastante feminizadas. A familiarização do cuidado com a RPB aponta para a ocupação desigual dos encargos do cuidado, que reproduz as bases de um modelo societário em que essa tarefa é delegada às mulheres que se encontram em condições mais vulnerabilizadas. Este trabalho buscou analisar em que medida a organização da política de saúde mental se apropria de atributos culturalmente forjados como femininos para fazer valer as diretrizes da Reforma, enquanto as condições para sua efetiva implementação vão sendo precarizadas e negligenciadas; e como essas dinâmicas aparecem nas relações entre as profissionais, enquanto agentes do Estado, e as familiares e cuidadoras.

Objetivos
Seu objetivo geral é investigar o processo de feminização e familiarização do cuidado em saúde mental na RPB, a partir da observação participante no cotidiano de um CAPS do município do Rio de Janeiro. Seus objetivos específicos são: observar as formas de gestão do cuidado no cotidiano dos serviços de saúde mental, tendo em vista a participação de mulheres nas relações de cuidado; investigar a relação entre gênero, cuidado e trabalho no contexto da Atenção Psicossocial; e investigar a relação entre cuidado e mecanismos de regulação de gênero que têm operado na reformulação da política assistencial em saúde mental no país.

Metodologia
A metodologia utilizada é a observação participante em um CAPS III do município do Rio de Janeiro. Realizar uma etnografia nesse contexto aposta na observação das formas de gestão do cuidado a partir dos espaços coletivos do CAPS, em especial a convivência, e em atividades coletivas que contavam com a participação dos cuidadores, como a assembleia e os grupos de acolhimento aos familiares.

Resultados e discussão
As análises do material recolhido em campo evidenciam as múltiplas camadas de sobrecarga e sofrimento psicossocial no exercício do cuidado, bem como as hipóteses em relação à massiva participação feminina nos arranjos de cuidado, especialmente em sua apropriação como trabalho não remunerado, no caso das cuidadoras da rede socioafetiva. É possível perceber que diferentes atores vão sendo acionados nos expedientes do serviço substitutivo, entre familiares e profissionais, sustentando a assistência e o acolhimento de um lado, o controle, a gestão, a contenção de outro. Ainda que esses dois polos sejam fortemente marcados em relação ao gênero, de modo que as mulheres são mais convocadas a cuidar e os homens a controlar, ao longo da pesquisa foi possível notar como esses sentidos se entrecruzam no cotidiano das relações de cuidado, evidenciando sua dimensão normativa. A relação dos cuidadores com a equipe do CAPS também é permeada por dinâmicas de acolhimento e parceria, bem como por cobranças e prescrições, que indicam como as diferentes noções de cuidado vão sendo confrontadas, ainda que de forma sutil, no dia a dia da RPB. O próprio projeto da Reforma e os ideais da Luta antimanicomial por vezes se contrapõem ao cansaço das cuidadoras, evidenciando as múltiplas camadas que esse encontro faz aparecer na intersecção de seus papeis sociais.

Conclusões/Considerações finais
O que proponho a partir desse percurso etnográfico é que ao falar da centralidade do papel das cuidadoras nos arranjos de cuidado na Atenção Psicossocial, é preciso considerar que falamos de mulheres vulnerabilizadas pelas relações raciais e de classe, além das dinâmicas de violência e exclusão que permeiam a relação com o território. É preciso dimensionar o lugar social desses atores nos contornos que a Reforma ganha ao longo de seu curso, na medida em que reproduzem a convocação de grupos subalternizados, evidenciando que as ausências do Estado são localizadas e contribuem para o duplo apagamento de suas experiências, seja como cuidadoras sem o suporte adequado, nem como sujeitos que demandam cuidado.