46830 - USO RITUALÍSTICO DE AYAHUASCA POR INDÍGENAS NA CIDADE DE MANAUS LUIZ OTÁVIO DE ARAUJO BASTOS - UFBA, YEIMI ALEXANDRA ALZATE LÓPEZ - UFBA, LENY ALVES BOMFIM TRAD - UFBA
Contextualização Dentre inúmeras plantas com propriedades psicoativas utilizadas nas Américas, a bebida conhecida como ayahuasca, talvez seja uma das mais pesquisadas, com seus alcaloides largamente descritos na literatura. Comumente preparada a partir do cipó mariri (Banisteriopis caapi) e folha da chacrona (Psychotria viridis), é tida como o modelo de medicina indígena no xamanismo amazônico. Todavia, ayahuasca trata-se de uma receita moderna, visto que comunidades indígenas mais afastadas dos centros urbanos, menos envolvidas no processo de modernização, apresentam uma heterogeneidade de práticas xamânicas, utilizando-se no preparo da ayahuasca usualmente apenas espécies do gênero Banisteriopsis ou outras famílias com propriedades similares – sem a adição de P. viridis, assim como a ayahuasca nem sempre apresenta papel central nessas práticas, tendo em vista o uso frequente de outras plantas psicoativas.
Descrição O presente relato trata-se do envolvimento do autor principal com um grupo de indígenas na cidade de Manaus, Amazonas que fazem uso ritualístico ("cerimônias", "rodas", "meditações") de ayahuasca e outras medicinas indígenas (rapé, paricá, sananga, kambo, ipadu, pimenta). A experiência faz parte também do pré-campo da pesquisa de mestrado deste autor. No momento, foi criada uma associação indígena e o autor principal participa como tesoureiro desta.
Período de Realização A experiência relatada vem sendo realizada desde agosto de 2021 até o presente momento.
Objetivos Tem como objetivo relatar o uso de ayahuasca por indígenas na cidade de Manaus enquanto uma medicina do povo Kaxinawá/Huni Kuin e do povo Tukano/Yepá Mahsã.
Resultados Em certo sentido, é impossível definir, mesmo que aproximadamente, quando e como nasceu o uso da ayahuasca, e, sobretudo, não é possível definir quanto o seu uso se transformou desde o contato com os exploradores e colonizadores. Podemos afirmar, entretanto, que a ideologia de um xamanismo mestiço na Amazônia se deu a partir das primeiras realidades urbanas na região, impulsionada pela crescente cultura new age interessada na bebida nas últimas décadas. Em Manaus, apesar do uso demarcado como indígena (kaapi, na língua dos Tukano/Yepá Mahsã e nixi pãe, entre os Kaxinawá/Huni Kuin), existem disputas e trocas entre os espaços indígenas e não indígenas (religiões ayahuasqueiras como Santo Daime e União do Vegetal) de uso ritualístico da bebida.
Aprendizados Na construção da Saúde Indígena enquanto área de conhecimento, as pesquisas e seus respectivos pesquisadores têm, contraditoriamente, contribuído para o agenciamento da autonomia dos povos indígenas perante a lógica tutelar do Estado, na medida em que relativizam o saber-poder da biomedicina e, apesar de receberem uma maior visibilidade e do engajamento dos atores, parece ainda existir uma grande lacuna entre o campo científico e campo político no que tange a efetivação de políticas públicas para populações indígenas. Chamo atenção aqui para a perspectiva dominante do conhecimento acadêmico ser em parte uma das possíveis responsáveis por essa lacuna, visto que impedem um efetivo diálogo entre gestores, pesquisadores e povos indígenas. Os cientistas, mesmo aqueles que se consideram aliados dos povos indígenas, falam outra língua, outra lógica de produção de conhecimentos. É preciso questionar antes o conceito de ciência. As universidades enquanto centros de conhecimento ao privilegiarem as teorias de homens ocidentais de cinco países (França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália) e têm suas estruturas fundacionais do conhecimento epistemicamente racistas e sexistas ao mesmo tempo. Para traçar a causa da persistência desse racismo/sexismo epistêmico, pode ser resgatado os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI – contra os muçulmanos e judeus na reconquista de Al-Andalus (península ibérica); contra os povos indígenas do continente americano; contra os africanos sequestrados para as Américas; e contra as mulheres sábias indo-europeias queimadas vivas na fogueira acusadas de bruxaria, sendo possível se traçar um paralelo entre a conquista de Al-Andalus e a conquista das Américas, já que em ambos os casos foi se utilizado métodos similares de evangelização, que consistia simultaneamente em uma forma de aniquilação da espiritualidade e de epistemicídio, isto é, a destruição do conhecimento e da espiritualidade caminharam juntas. Assim o racismo religioso (“povos sem alma”) contra os ameríndios teria antecedido o racismo de cor do sistema-mundo patriarcal, eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista.
Análise Crítica A assimilação pelos ocidentais dos conhecimentos indígenas acaba com a radicalidade política e a cosmogonia crítica ‘alternativa’” para transformá-los em objetos com valor, isto é, transformá-los em capital econômico ou simbólico, ou para despolitizá-los. Como alternativa decolonial a esse saque epistêmico a proposta é uma reciprocidade profunda como forma de ser e estar no mundo, um intercâmbio justo nas relações entre seres humanos e nas relações entre humanos e não-humanos.
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