Comunicação Oral Curta

02/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC32.2 - Saúde mental e interseccionalidades

46161 - ANTIGOS E NOVOS DESAFIOS DA INTERSECCIONALIDADE NO DUPLO E COETÂNEO PROCESSO: DO CUIDADO A UMAMULHER EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL E DA FORMAÇÃO EM SAÚDE MENTAL.
DALVA DE ANDRADE MONTEIRO - UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA


Contextualização
A experiência triangulada foi comum à: 1) Dolores (nome fictício e simbolicamente justificado); a sua acompanhante (a filha mais velha de três, 45a, que sempre participou das consultas presenciais, no período anterior à Pandemia); 2) à professora, médica e com formação em Saúde Mental); e 3) mais quatro discentes, a cada consulta. É um contexto de duplo e comum processo de assistência e de ensino-aprendizagem; atividade que ocorre semanalmente no período letivo do sexto ano (Internato), do curso de medicina, desenvolvido majoritariamente com as Metodologias Ativas/Aprendizagem Baseada em Problemas (APB), com graduandos de uma universidade pública, num município da Bahia. A experiência em foco aconteceu durante uma atividade prática de atendimento clínico especializado, num CAPS II.

Descrição
Trata-se da experiência que se iniciou, em 2018, quando da primeira consulta acadêmica a Dolores, mulher cis, sexagenária, negra, fácies bastante envelhecida, de baixa estatura, normolínea, analfabeta, católica, do lar, solteira e sem companheiro, recebe o Bolsa Família, residente num imóvel próprio, num bairro periférico do município baiano (com alto índice de violência segundo o seu relato) com mais três filhas, das quais ela era a cuidadora de seus filhos (4 netos: 4 e 5 anos (meninos), 7 e 8 anos (meninas)),para que elas pudessem trabalhar como diaristas, quando demandadas, auxiliando no sustento das 8 pessoas. Portadora de hipertensão arterial sistêmica, controlada farmacologicamente, compareceu à consulta encaminhada pelo Hospital Especializado regional, após alta, onde estivera internada por uma semana porque tentara incendiar a sua casa para matar a si, as filhas e os quatro netos, obedecendo a voz de comando, a qual justificava que era para evitar que todos fossem mortos por marginais dos quais ela ouvia as vozes de ameaças. A filha acompanhante informou que: havia outros familiares portadores de transtorno mental grave; que Dolores começou a mudar o comportamento nos últimos seis meses, mas que, anteriormente, já se mostrava inquieta, sono alterado e nervosa porque se deparava com jovens, que conhecia desde a infância e acompanhara o crescimento, assassinados; ouvia relatos de que sofreram torturas cruéis; tinha como rotina frequentar a missa semanalmente e, diariamente, assistia aos programas jornalísticos sensacionalistas da televisão.

Período de Realização
o acompanhamento clínico ocorreu no período dos anos letivos 2018 - 2023, quando foi encaminhada para USF próxima a sua residência, após 24 meses de estabilidade psíquica positiva. Inicialmente, as consultas eram mensais e, após o primeiro semestre de acompanhamento, dada a evolução positiva, passaram a ser bimensais, período máximo para prescrição e disponibilização de psicofármacos. No período mais dramático da Pandemia e até antes da terceira dose da vacina contra o SARS- CoV-2, caracterizando o cuidado com Dolores, as 3 filhas se revezavam para ir às consultas, descrever a evolução da genitora e receber as medicações para o bimestre.

Objetivos
1) Promover o cuidado biopsicossocial à mulheres, usuárias do SUS, em sofrimento mental e em vulnerabilidade social; 2) Fomentar nos discentes o aprendizado sensível, ampliado e técnico para o cuidado biopsicossocial em Saúde Mental às mulheres em situação de sofrimento mental e em vulnerabilidade social; 3) Exercitar nos discentes em formação a valorização das informações intersecionais e da rede e da rotina que impactam vulnerabilizando ou como ferramentas terapêutica as mulheres em situação de sofrimento mental e em vulnerabilidade social.

Resultados
Cada um dos 4 aprendizados na escuta de Dolores orientaram o plano terapêutico biopsicoafetivosóciocultural, ao mesmo tempo em que sensibilizou os discentes para a investigação da interseccionalidade das dimensões biológicas, psicológicas, de gênero, étnico-raciais, socioeconômicas, culturais e as ambientais na eclosão do transtorno mental grave em uma mulher. Na contramão do reducionismo biológico, há que se considerar, como resultado desafiante, e proposto pela psicanálise, que o quadro psicótico apresentado por Dolores foi uma tentativa do seu aparelho psíquico de preservá-la de uma realidade insuportável.

Aprendizados
1) Em se tratando do aprendizado biopsíquico, foi enfatizado que Dolores tem histórico de familiares com diagnóstico de transtorno mental grave; que está numa faixa etária onde há possibilidade de maior ocorrência de doença mental em mulheres; que é portadora de HAS, tratando-se com anti-hipertensivo, submetida aos seus efeitos farmacológicos terapêuticas e adversos, demandando atenção se haveria interação medicamentosa com os psicofármacos a serem prescritos. 2) No que concerne ao aprendizado dos fatores neuropsíquicos, ela vivencia uma realidade estressante, submetida às descargas diárias de cortisol para além do fisiológico, estímulos adrenérgicos por conta das precárias condições socioeconômicas que comprometem a qualidade de vida pessoal, das filhas e dos netos, além dos rotineiros afazeres domésticos e de cuidados das crianças na ausência das filhas. 3) Em se tratando do aprendizado psicoemocional, Dolores sofria com frequência o luto, pela perda violenta e por vezes cruel, dos jovens de seu conhecimento e afetividade, que eram assassinados periodicamente, fato que a colocava em sororidade com as mães enlutadas e em situação de vulnerabilidade no presente e no futuro, quando seus netos chegassem à adolescência. 4) O outro aprendizado, sociocultural, com importantes e danosas repercussões psíquicas, é que o lazer de Dolores era fonte de estresse e trazia a violência, principalmente para jovens pretos e periférico, para o seu cotidiano e em sua residência, por intermédio dos programas sensacionalistas televisivos nos três turnos do dia.

Análise Crítica
Os aprendizados com essa experiência não modificam substancialmente a vida de Dolores e seus familiares. Trazem, no entanto, o desafio constante e vitalício para os profissionais da saúde e da educação, da materialização de uma práxis militante, humanizada, integral e acolhedora.