Comunicação Oral Curta

02/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC5.1 - Gênero e sexualidades: marcadores sociais e cuidado em saúde

46770 - “ENTRAR NO SHAPE OU FICAR SEM NADA”: A RELAÇÃO ENTRE ATUAÇÃO PROFISSIONAL E A CONSTRUÇÃO DO CORPO DE UM PERSONAL TRANS
MARIA CLARA ELIAS POLO - USP, MICHEL DE OLIVEIRA FURQUIM - USP, JOSE MIGUEL NIETO OLIVAR - USP


Apresentação/Introdução
Os corpos, de modo geral, têm sido olhados de uma perspectiva física, biológica e mecânica, inicialmente pelos estudiosos do norte global com vistas a definir quem era e quem não era “humano”. Essa perspectiva das ciências naturais, ainda está presente, especialmente no campo da saúde e na subárea denominada Educação Física, de modo a fragmentar e tolher os corpos.

O discurso moderno expressada pela maquinaria pedagógica e midiática, induz os indivíduos a lapidarem seus corpos à medida que são os únicos responsáveis pela manutenção da sua saúde. Atualmente, a frase “entrar no shape” é veiculada diariamente nas redes sociais – e na vida social, estimulando uma parte considerável de jovens adultos a perseguir rotinas de treino e alimentação baseada em suplementação de proteína – além de outras tecnologias de fabricação de corpo como a hormonização - uso de testosterona, e a aplicação de ozempic – “caneta mágica”.

Os corpos que criam ranhuras na cis-heteronormatividade e no padrão colonial ‘almejado’, estão presentes no campo de atuação da Educação Física, ainda que estes corpos não vicejem como focos de atenção ou mesmo produção científica da área.
Com isto em vista, este trabalho é um recorte de minha tese em desenvolvimento que busca refletir sobre as seguintes perguntas: Se seguimos permeadas por regimes de visibilidade e conhecimento, como é possível atuar profissionalmente em uma área, como a Educação Física, que comumente é associada ao reforço de estereótipos de feminilidade, masculinidade e constante cristalização de preceitos hetero-cis-normativos? E como a construção de um corpo se relaciona com atuação profissional?


Objetivos
O objetivo deste trabalho é analisar como um profissional de educação física trans constrói seu corpo e se organiza no cistema – em especial, na atuação profissional.

Metodologia
Nesta pesquisa foi realizada uma etnografia, sendo esta, um dispositivo de produção de conhecimento. Realizei combinação de entrevistas abertas, além de conversas informais, fotografias, desenhos. Utilizei diários de campos. Também foram utilizados gravadores.
Neste estudo etnográfico, acompanhei por dez meses, um profissional de educação física (PEF) trans, em uma cidade do interior de São Paulo, SP.


Resultados e discussão
“Difícil conseguir aluno...Não tenho barba feitinha como eles, e eu sou pequeno”
Algumas pesquisas realizadas no campo da Atividade Física (AF) e Saúde que retratam sobre transexualidade, mencionam o papel da AF e das práticas corporais como uma ferramenta social para a aceitação do corpo. Nestas, exploram discussões sobre a produção de uma estética tida como masculina, para tentar o pertencimento e solidificar a identidade do homem. Apesar de viver o processo de hormonização, Bequadro não conseguiu criar essa “barba feitinha”, e a altura não é algo de se mudar.

O que é possível, em termos visuais – e não comportamentais, para além do crescimento de fios e de ossos? O desenvolvimento de músculos para expressar a própria identidade de gênero. A partir disso, Bequadro iniciou os treinos entre as aulas que ministra, com o objetivo de “crescer”. Em uma das nossas conversas, Bequadro foi incisivo:
“Eu nunca vou ser como eles...me resta tentar ter o corpo para que a galera olhe e fale: a lá..acho que ele pode saber sobre o assunto...isso é ter dignidade, sabe?”.

Nesse caso de um PEF, a ideia de realizar mudanças corporais por meio da AF, parece não ser apenas para se “parecer esteticamente com um homem cis” e somente a partir dessa passabilidade, ter “dignidade”. Quando Bequadro menciona que “nunca vou ser como eles”, ele conscientemente busca produzir um corpo só “dele”, para conseguir emprego. A palavra dignidade nos alerta para nuances que extrapolam as relações de poder sobre estética. Bequadro busca construir um corpo que aposta superar a linearidade colonialidade cis-normativa para sobreviver no campo de atuação.


Conclusões/Considerações finais
Para além de atestar que existe uma norma e que há um sistema que determina a inteligibilidade do “ser mulher” ou do “ser homem”, generificado a partir de convenções sociais, nos resta também buscar produzir algo novo a partir daquilo que existe: Ainda que “entrar no shape” possa parecer um processo de assujeitamento ao cistema, é também uma estratégia de sobrevivência para conseguir dinheiro e tempo para “assistir uma Netflix...o que quer que seja, cuidar de mim” (Bequadro).

A construção do corpo para Bequadro está relacionada ao sistema capitalista na produção de um sujeito econômico, em receber mais de 10 reais a hora de trabalho, em tempo destinado as atividades no lazer, em tempo de cuidado de si: “Conforme eu vou me mostrando, eu consigo mais alunas de personal, consigo comprar pro café sem ser pão com margarina, dormir aos domingos de manhã. Sabe? Ou eu entro no shape ou eu fico sem nada”.