Comunicação Oral

02/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO2.4 - Contribuições à integração entre gestão, atenção e vigilância em saúde

46408 - NEGACIONISMO CIENTÍFICO E AUTONOMIA DOS USUÁRIOS DO SUS NO ACESSO À CLOROQUINA E HIDROXICLOROQUINA NA EMERGÊNCIA SANITÁRIA DA COVID-19
MARIA GORETTI TÔRRES BEZERRA - UFRJ, MIRIAM VENTURA DA SILVA - UFRJ


Apresentação/Introdução
Em março de 2020, no auge da crise sanitária global da covid-19, os medicamentos cloroquina (CQ) e hidroxicloroquina (HCQ) foram reportados como promissores para o tratamento da infecção viral, quando se iniciaram os estudos clínicos mundiais sobre a doença. Em julho de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu as pesquisas com a HCQ em pacientes hospitalizados, dada a insuficiência de evidências quanto à eficácia dos medicamentos. Em março de 2021, os fármacos já não eram mais considerados prioridade nos estudos da OMS. O Ministério da Saúde (MS) brasileiro manteve as orientações e a distribuição dos medicamentos contra a covid-19 no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), na modalidade de uso off-label (fora de bula), a critério médico, em decisão compartilhada com o paciente, conforme orientações do governo federal, consubstanciadas em parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM).


Objetivos
A pesquisa analisou as controvérsias jurídico-políticas e sanitárias, cotejando-as com a legislação e regulamentação ordinária, bem como as manifestações de atores políticos e sociais relacionadas às orientações do gestor público federal (MS) para o uso dos medicamentos CQ/HCQ, como medida farmacológica contra a covid-19 na rede pública de saúde, no período de 1º de janeiro de 2020 a 31 de agosto de 2022. Enfatizou-se, neste resumo, a autonomia de médicos e pacientes como uma dimensão do direito humano à liberdade em estados democráticos. Foi questionado se o acesso a medicamentos de uso off-label – sem razoável consenso científico – se constitui como uma medida válida no enfrentamento dos desafios à garantia da equidade na efetivação do direito humano à saúde.

Metodologia
O estudo qualitativo, retrospectivo, descritivo e analítico utilizou a pesquisa documental combinada à bibliográfica à luz dos princípios jurídicos – nacionais e internacionais – do Direito Sanitário. Realizou-se uma busca sistemática de atos jurídicos normativos federais e outros documentos de atores governamentais e não governamentais envolvidos na discussão sobre o uso da CQ/HCQ nos sites oficiais dos Poderes Legislativo e Executivo e de organizações da sociedade civil previamente selecionadas.

Resultados e discussão
Na maioria dos documentos oriundos dos conselhos profissionais, das sociedades e associações médicas nacionais (39 registros), prevaleceram as ressalvas ao uso dos medicamentos fora de ensaios clínicos e das normas bioéticas em vigor, excetuando-se o CFM, que respaldou o entendimento do MS à ampla autonomia médica e do paciente à prescrição off-label da CQ/HCQ, e ao direito à liberdade e ao dever estatal de garantir seu acesso. No âmbito do Poder Legislativo e do Executivo federal, os 39 registros apontaram que, apesar da mobilização social e política contra as orientações ministeriais, as ações governamentais para o uso da CQ/HCQ foram permeadas por riscos sanitários. Além disso, houve descumprimento do devido processo legal regulatório, mantendo-se sem a autorização excepcional para novo uso pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a oportuna avaliação técnica da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), em confronto com o princípio jurídico-constitucional da segurança sanitária. As orientações terapêuticas para uso da CQ/HCQ no SUS produziram uma política sanitária alheia à ciência, às boas práticas clínicas, à proteção da saúde e ao uso racional de medicamentos, antagonizando-se com as diretrizes da OMS, das entidades técnico-científicas nacionais e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) no que tange às liberdades democráticas e às limitações permitidas nas emergências sanitárias.


Conclusões/Considerações finais
É urgente a discussão sobre os mecanismos que garantam a máxima efetividade do princípio da segurança sanitária, o qual estabelece deveres de proteção legal aos cidadãos pelo Estado. As normas legais e políticas regulatórias brasileiras se mostram formalmente adequadas e válidas como diretrizes coletivas à autonomia dos cidadãos no âmbito da assistência à saúde, sem prejuízo da segurança sanitária a ser garantida pelo Estado. Todavia, sua eficácia e efetividade se revelaram limitadas na pandemia, não impedindo a manutenção das orientações do gestor federal – entendimento, a contrario sensu, das normas nacionais e disposições à limitação e derrogação de liberdades do PIDCP. A política sanitária adotada, além de contrária à lei, em medida arbitrária e sem evidência científica, carece de objetivo legítimo de interesse geral, apresentando sérias repercussões e sérios efeitos deletérios à saúde pública. As ações governamentais merecem reflexões críticas sobre a defesa à ampla autonomia dos pacientes e médicos nas prescrições off-label e em situações pandêmicas considerando a segurança sanitária e do próprio paciente.