Comunicação Oral

02/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO12.2 - Epistemologias da Saúde desde o Sul: Pesquisa participativa e construção compartilhada de saberes

47976 - QUANDO A ENTREVISTA SILENCIA: METODOS DECOLONIAIS DE PESQUISA PARA OUVIR VOZES OUTRAS.
ERNESTINA TECU - ISC-UFBA, CRISTIAN DAVID OSORIO FIGUEROA - ISC-UFBA


Apresentação/Introdução
Existe uma crescente preocupação sobre o uso de métodos clássicos de pesquisa em contextos racializados. O movimento "nada de nós, sem nós", assim como teóricxs indígenas, feministas e negrxs, têm sinalizado que os métodos clássicos de pesquisa reproduzem discursos hegemônicos e impõem perspectivas ocidentais em contextos do Sul Global. Este artigo reflete sobre o desenvolvimento metodológico de uma pesquisa realizada sobre experiências de pessoas adultas e idosas indígenas Maya K'iche’ vivendo com Diabetes Mellitus e Hipertensão arterial na Guatemala.

Objetivos
Descrever o desenvolvimento metodológico de uma pesquisa com perspectiva decolonial, para garantir a justiça hermenêutica das/os sujeitas e sujeitos participantes da pesquisa.

Metodologia
Recorremos às contribuições teóricas de Lorena Cabnal sobre o feminismo comunitário e à sistematização dos métodos de pesquisa indígena por Bagele Chilisa. Desenvolvemos uma base teórica inicial para uma pesquisa que contemplou a justiça hermenêutica e a cosmogonia indígena feminista como elementos transversais. Em seguida, propusemo-nos a desenvolver entrevistas em formato de história de vida focalizada, desenvolvidas na linguagem K'iche’, para que fosse capaz de ouvir as experiências das pessoas, a partir de sua perspectiva e modo de ver e interpretar a vida.

Resultados e discussão
Partimos dos pressupostos teóricos de Lorena Cabnal, quem defende que as mulheres indígenas são sujeitas epistêmicas que constroem o conhecimento por meio de seu cotidiano sentir-pensar e agir, sem necessariamente produzir teorias na forma ocidental de produção do conhecimento. Assim como no princípio da Justiça Hermenêutica elaborado por Miranda Friecher, quem sustenta que a participação desigual de sujeitas/os na construção de discursos, orais ou escritos, conclui na representação parcial das experiências dessas/es sujeitas/os, incorrendo em injustiça hermenêutica.
Diante disso, optou-se pelo cuidado de desenvolver uma entrevista que não partisse de categorias previamente definidas pela biomedicina, nem focalizasse apenas em categorias de interesse da biomedicina, como farmacoterapia, controle de marcadores biológicos e mudanças de hábitos e estilos de vida. Toda vez que isso representaria apenas uma parte da complexa realidade da experiência das pessoas indígenas Maya K'iche’ que convivem com doenças crônicas, incorrendo em uma injustiça hermenêutica.
Por outro lado, reconhecendo às pessoas indígenas, sobretudo às mulheres, como sujeitas e sujeitos epistêmicas/os, a entrevista explorou os modos de sentir-pensar e agir no cotidiano das pessoas. Independentemente de terem ou não nomeado elementos específicos da experiência com a doença. Pois, reconhecemos que a experiência da doença e as vivências cotidianas das pessoas são inseparáveis. Assim, sem importar o que as pessoas expressem sobre suas vidas, nos oferecem informação sobre os modos nos quais as pessoas cuidam de si e significam sua convivência com a doença.
Para nortear o desenho dos instrumentos, apoiamo-nos em uma das propostas apresentadas por Bagele Chilisa no seu livro Metodologias de Pesquisa Indígena: a entrevista focada numa história de vida. Esse método permite que cada pessoa construa sua própria história em relação aos vínculos que tem com outras pessoas e outros elementos de seu ambiente. Esse método é aberto para que a pessoa conte o que quiser compartilhar, da maneira que quiser compartilhar, incluindo elementos de ligação que fazem parte da cosmogonia indígena da vida comunitária e da interdependência das vidas. Dessa forma, evita-se o individualismo que comumente aparece em outros métodos de entrevista. Além de permitir que as pessoas usem suas próprias referências cosmogônicas e epistemológicas para contar sua história.
Em conjunto com esse método, e em consonância com os demais princípios, as entrevistas foram conduzidas na língua Maya K'iche’, de modo que todos os depoimentos respeitassem a cosmogonia das pessoas entrevistadas. Evitou-se o uso de categorias inexistentes para a cultura Maya K'iche’, tais como glicemia, pressão arterial, hipoglicemia, hiperglicemia, hipertensão, dentre outras. Isso possibilitou que as pessoas expressassem seu próprio modo de compreender sua relação com a doença e o modo como compreendem a condição com a qual convivem.

Conclusões/Considerações finais
O uso de metodologias decoloniais ou pós-coloniais, especialmente em contextos racializados, permite garantir a justiça hermenêutica das/dos sujeitas e sujeitos representadas/os nos estudos. Além disso, reconhece e respeita às/aos participantes como sujeitas/os epistêmicas/os capazes de gerar conhecimento em seu cotidiano. Tudo isso oferece perspectivas enriquecedoras sobre o processo saúde-doença-cuidado dos povos e comunidades indígenas, o que é muito útil para a melhora da assistência nos serviços de saúde e, é um elo indispensável para a garantia do direito à saúde das comunidades e povos indígenas.