02/11/2023 - 13:10 - 14:40 CO17.2 - Territórios, identidades e sofrimentos - narratividade e cuidados em saúde mental de crianças e adolescentes |
47082 - AS CRIANÇAS E OS ADOLESCENTES NAS POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS DE PREVENÇÃO DA AUTOMUTILAÇÃO MADALENA CAMPOS CIRNE - IMS/UERJ
Apresentação/Introdução Pensar as experiências de crianças e adolescentes significa refletir sobre como esses vivem, pensam e criam suas realidades, perpassadas por dimensões como gênero, raça e classe social. Tal esforço aponta para a necessidade de observar as agências infantojuvenis, mas também requer pensar sobre as condições políticas, sociais e culturais que modelam as possibilidades de experiência de ser criança e adolescente. A automutilação, prática que nos últimos anos ganhou visibilidade pela sua incidência e associação com a população adolescente, vem convocando pesquisadores, trabalhadores e gestores da saúde à produção de conhecimento e ações de prevenção e cuidado – tarefa que apesar de necessária esbarra com alguns limites relacionados ao caráter frequentemente secreto da prática. Muitos adolescentes evitam procurar ajuda de figuras de cuidado em relação à automutilação por motivos como: ausência de serviços de suporte percebidos como apropriados; experiências passadas insatisfatórias; medo da perda de confidencialidade; e vergonha de ser visto como irracional ou desviante. Nesta investigação, parte-se do princípio de que relações de poder desiguais moldam como crianças e adolescentes se relacionam com seu sofrimento e com a prática da automutilação. Interessa refletir como que políticas governamentais de prevenção da automutilação e suicídio se relacionam com a possibilidade de agência de crianças e adolescentes em relação a tal prática.
Objetivos Neste trabalho, investiga-se como as ações governamentais de prevenção da automutilação e do suicídio produzidas pelo Estado brasileiro entre 2017 e 2020 – período atravessado pela ascensão de uma agenda neoliberal e conservadora – representam e produzem a agência de crianças e adolescentes em relação à prática da automutilação.
Metodologia A partir do método da etnografia de documentos, foram examinados arquivos públicos das políticas governamentais de prevenção da automutilação e do suicídio entre crianças e adolescentes. Baseando-se na compreensão desses materiais como objetos privilegiados da burocracia estatal, com capacidade de produção de verdades, explora-se o que eles registram e produzem e os seus efeitos de ocultamento ou de exibição de hierarquias, emoções, valores, práticas e agenciamentos.
Resultados e discussão Como uma linha de força predominante das ações governamentais de prevenção da automutilação e suicídio, percebe-se o enquadramento das crianças e adolescentes como vítimas – a automutilação é algo que é feito contra elas. Diante do caráter ambíguo dos atos autolesivos (esses fundem o binômio agressor e vítima) há um esforço de atenuar o aspecto transgressor do ato, passível de repreensão, e de acentuar o processo de vitimização, que demanda cuidado e atenção. As crianças e adolescentes são frequentemente identificados como vítimas de um intenso sofrimento que as induz à automutilação, ou como vítimas de incitadores da prática nas redes sociais. A produção de uma ideia de vítima é relevante pois circunscreve e confere reconhecimento social e legitimidade moral ao sofrimento, entretanto, ela também produz a cristalização de uma imagem das crianças e adolescentes como figuras vulneráveis, o que pode se coadunar a discursos e práticas que preterem os direitos desse grupo e a sua possibilidade de agência. Isso se torna explícito nos modos como as ações governamentais examinadas abordam a questão do uso das mídias digitais. Os discursos e orientações circulam entre a vigilância e a educação, mas os parâmetros para o que seria um uso seguro da internet são sempre definidos pelas figuras de autoridade, como pais, professores e trabalhadores da saúde. Ainda, a essencialização da vulnerabilidade infantojuvenil torna-a passível de ser operacionalizada para mobilização de pânicos morais, como o do “jogo da Baleia Azul” e a “ideologia de gênero”.
Conclusões/Considerações finais As ações governamentais de prevenção da automutilação e suicídio aqui analisadas posicionam crianças e adolescentes que se automutilam como vítimas em uma estratégia de produção de acolhimento e cuidado. Tal construção ignora a diretriz da Política de Saúde Mental Infanto-Juvenil de que crianças e adolescentes são responsáveis por sua demanda e seu sintoma. É preciso considerar que crianças e adolescentes praticam e sofrem a automutilação, ela não é somente um mecanismo induzido por emoções negativas e pelas redes sociais, mas uma prática de agência em relação ao sofrimento. Destaca-se a necessidade de que políticas e ações de prevenção e cuidado abarquem a autonomia das crianças e adolescentes em relação aos seus corpos, produzindo, assim, espaços considerados seguros para o pedir ajuda.
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