Comunicação Oral

02/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO17.2 - Territórios, identidades e sofrimentos - narratividade e cuidados em saúde mental de crianças e adolescentes

47757 - QUEM CUIDA DAS CRIANÇAS? REFLEXÕES SOBRE INFÂNCIA, GÊNERO E SAÚDE MENTAL EM UM TERRITÓRIO PERIFÉRICO
LUNA RODRIGUES - UFRRJ


Apresentação/Introdução
A Política de Saúde Mental para Crianças e Adolescentes orienta as práticas de cuidado dirigidas a essa parcela da população no Brasil. A partir do reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e sujeitos psíquicos, são estabelecidos princípios gerais para a organização da atenção em saúde mental, fundamentados em uma ética do cuidado, entendida como ação ampliada, construída coletivamente, e de responsabilidade pública. A efetivação da política em termos de oferta de cuidado, ainda que tenha como fundamento as referências apontadas, será inescapavelmente atravessada pelos marcadores sociais que caracterizam os diferentes territórios brasileiros, de modo que possibilidades, estratégias e percalços variados devem ser mapeados e analisados.
Além dos reconhecidos desafios de implantação e qualificação da rede de cuidados, nos últimos três anos, com a pandemia de Covid-19, antigos problemas se intensificaram e novos sofrimentos emergiram, configurando um dos maiores desafios a serem enfrentados no campo da Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (SMCA). Neste período, verificamos o aumento da demanda de cuidados, com o surgimento de novos casos e o aumento do fluxo de usuários das camadas médias, além do profundo processo de desmonte e esvaziamento dos serviços públicos de saúde e os ataques diretos ao campo da saúde mental, que intensificaram o estado de precariedade dos cuidados ofertados em territórios historicamente pouco investidos.


Objetivos
Considerando o cenário descrito, a partir da inserção em uma universidade pública localizada na periferia do Rio de Janeiro, elaboramos pesquisas qualitativas que buscaram investigar os modos pelos quais crianças e adolescentes vêm sendo compreendidos e cuidados em diversos territórios da nossa região. Neste trabalho, pretendo sistematizar algumas reflexões elaboradas a partir dos resultados de três pesquisas qualitativas tendo como tema transversal o cuidado em SMCA. Estas pesquisas envolveram profissionais da rede de saúde mental, da rede de assistência social e familiares que frequentavam um CAPSi.

Metodologia
Destacarei o entrelaçamento entre infância, gênero e cuidado em saúde mental, refletindo sobre as condições e os efeitos que marcam as vivências de crianças que necessitam de atenção em saúde mental e de mulheres que o exercem nos territórios em questão.

Resultados e discussão
Em todas as pesquisas realizadas, a predominância de mulheres é marcante, seja como profissionais das redes, seja como cuidadoras que acompanham os filhos em seus tratamentos. Tal fato, longe de surpreender, reafirma o histórico processo de divisão de gênero nas práticas de cuidado, a partir do qual a responsabilização pelas crianças mantém-se como uma tarefa de mulheres.
A despeito das importantes diferenças, chama atenção a realidade compartilhada por cuidadores e crianças no território em questão, com destaque para o período da pandemia. Trata-se de uma região periférica e majoritariamente de baixa renda, constituindo um cenário de vulnerabilidade social. As famílias enfrentam dificuldades de acesso aos serviços, instabilidade econômica, desemprego, violência e pouca presença de redes de apoio na lida cotidiana com seus filhos. Verificamos a presença de serviços públicos de saúde e assistência, constituindo redes de atenção, mas as condições políticas e sociais da região tornam as instituições frágeis, expostas a ingerências políticas, descontinuidades no trabalho e alta rotatividade profissional.
A vulnerabilidade generalizada experimentada por crianças, mães e profissionais tem impactos sobre o cuidado em saúde mental. Este é marcado pela disponibilidade individual, afetiva e espontânea de mulheres que se colocam em posição de cuidadoras, muito mais do que pela institucionalidade dos serviços, das redes de proteção ou dos mecanismos de garantia de direitos. Diante da fragilidade dos recursos institucionais, coletivos e políticos, as cuidadoras lançam mão do saber do cotidiano, de habilidades interpessoais e de redes privadas de relações, mobilizando toda a sua capacidade de escuta, vinculação, ação e resistência.


Conclusões/Considerações finais
Ainda que tais recursos possam compor qualitativamente a dinâmica de cuidado em saúde mental, a sua exclusividade e saturação revela a ausência da dimensão política e coletiva que defendemos como constitutiva do direto à saúde de crianças e adolescentes. De um lado, produzem efeitos nefastos na própria saúde mental das cuidadoras, que apontaram em todas as pesquisas o seu crescente sofrimento psíquico, o uso frequente de psicotrópicos e o recurso a afastamentos e licenças por questões de saúde. De outro, reproduzem o entendimento histórico do cuidado de crianças como atividade privada, abrindo espaço para práticas tutelares e assistencialistas, que restringem as possibilidades de crianças e adolescentes se inserirem na vida coletiva.