Comunicação Oral

02/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO25.2 - PICs em saúde e direitos ao cuidado: epistemologias, práticas e formação integral nos serviços

47142 - O CORAÇÃO NO YOGA: UM ESTUDO HERMENÊUTICO SOBRE A EPISTEMOLOGIA DAS UPANIṢAD’S
LÉO FERNANDES PEREIRA - UFSC, CHARLES DALCANALE TESSER - UFSC


Apresentação/Introdução
A conformação do yoga como prática de saúde é algo recente na história desse saber prático de origem indiana. As transformações que se deram a partir de sua ocidentalização, do contato com culturas físicas europeias, de sua secularização e, por fim, da globalização e o processo concomitante de cientifização e tecnificação desse saber, geraram o que atualmente se conhece popularmente como yoga (e academicamente como Yoga Postural Moderno [YPM]). Atualmente, constata-se um predomínio do olhar biomédico sobre o yoga, que, por meio de ensaios clínicos, busca investigar os efeitos do yoga sobre os chamados fatores de risco cardiovascular (colesterol, pressão alta, entre outros). Contudo, essa abordagem pode limitar a compreensão mais ampla e profunda do yoga, reduzindo-o a uma técnica curativa e ou preventiva. Teóricos e professores de yoga argumentam que a ‘medicalização do yoga’ desviaria a atenção de aspectos filosóficos, acarretando na ausência de discussões conceituais (e.g., sobre o termo sânscrito hṛdayam – coração) e epistemológicas que fundamentam e elucidam o(s) objetivo(s) do yoga.

Objetivos
Investigar potenciais contribuições do yoga para as estratégias de prevenção das doenças cardiovasculares, articulando e contrastando as epistemologias de ambas as racionalidades no que tange os seus respectivos entendimentos sobre o "coração" e fatores de risco associados.

Metodologia
A pesquisa (em andamento), de natureza teórico-hermenêutica, orienta-se pela perspectiva decolonial pois visa à teorização do yoga de modo informado por sua própria tradição, considerando tratar-se de um saber que possui racionalidade própria, mantida pela oralidade e por seu corpo literário (os veda's). Com enfoque nos objetos de investigação (hṛdayam e yoga), foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre uma parte específica dos veda's, chamados coletivamente de upaniṣad’s, tendo como apoio para interpretação comentários e aulas de autoridades representativas dessa tradição hermenêutica. Tais interpretações serão, então, colocadas em interface com o modo de produção do saber epidemiológico, atualmente utilizado para investigar os efeitos do YPM na prevenção cardiovascular.

Resultados e discussão
Das transformações ocorridas no yoga, um saber prático que possui uma história multilinear e multifacetada (mesmo antes de sua ocidentalização), chamamos à atenção para aspectos, antes presentes na sua (reconhecida) tradição de origem e que se fazem ausentes na sua conformação epistemológica ocidental. O primeiro é o lugar da experiência pessoal e do questionamento (parīkṣa) sobre a vida. Uma vez que os efeitos desse saber se tornaram apreensíveis predominantemente por meio da leitura biomédica-quantitativa deixou-se de investir na saúde do coração como uma empreitada soteriológica (i.e., visando à emancipação existencial) de caráter experiencial e reflexivo. Nos veda’s, hṛdayam possui função central, pois: 1) o coração possui ‘nós’ (hṛdaya-granthi), representação simbólica daqueles desejos que aprisionam o sujeito em sua condição existencial; 2) é somente no coração (quer dizer, apenas o sujeito na sua intimidade) que se poderia validar a eficácia última do yoga; 3) é nele que a ‘palavra védica’ (śabda) é moldada. Acrescenta-se que a palavra védica (i.e., suas escrituras) é considerada o ‘padrão ouro’ da epistemologia indiana, uma vez que é exclusivamente por meio dela que se teria acesso ao conhecimento soteriológico. Dessa maneira, autoridades da tradição compreendem que existe uma incomensurabilidade irreconciliável entre o tema principal das upaniṣad’s (a relação de identidade entre o absoluto [brahman] e o ‘eu’ [ātmā]) e a racionalidade científica. Outro aspecto observado diz respeito ao caráter pedagógico desse saber, outrora estabelecido num desenvolvimento hermenêutico fruto da tríade professor-estudante-escrituras. O uso do yoga no âmbito da epidemiologia clínica e a generalização de seus efeitos levantam questionamentos sobre a perda do encontro singular, de reconhecida força terapêutica e sobre a inversão epistemológica ocorrida no seio desse saber, em que as escrituras védicas são relegadas ao plano da fé, perdendo-se de vista, por assim dizer, a força enteogênica das palavras (i.e, deixam de serem compreendidas como instrumento para o conhecimento soteriológico).

Conclusões/Considerações finais
De modo geral e preliminar, verifica-se um tipo de subjugação epistemológica, já que o yoga possui, na sua base filosófico, seus modos próprios de conhecimento. Ainda que tenha assumido contornos radicalmente distintos, uma vez que foi eivado pela lógica neoliberal, na sua raiz védica e em sua orientação não-dualista, o yoga está compromissado com a emancipação existencial (mokṣa) e, consequentemente, com o bem-comum (loka-saṃgraha). Nesse sentido, maiores explorações sobre a filosofia do yoga poderiam auxiliar na expansão do escopo da saúde para além dos limites biomédicos.