46938 - “PARAR A MÁQUINA DE FAZER CADÁVERES NEGROS” NO RIO DE JANEIRO: UMA APOSTA PSICANALÍTICA NO CUIDADO EM SAÚDE MENTAL AOS AFETADOS PELA VIOLÊNCIA ARMADA DE ESTADO FILIPI DIAS DE SOUZA MALTA - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, RENATA COSTA-MOURA - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Contextualização O presente trabalho objetiva apresentar reflexões críticas que entrelaçam a temática da saúde mental e da segurança pública a partir de minha experiência como extensionista no Núcleo de Psicanálise e Política da Universidade Federal Fluminense (NUPP/UFF), durante os anos de 2020 a 2023.
Descrição Reunindo inquietações sobre a política de segurança pública nacional, apresento indagações oriundas de uma experiência de atendimento clínico, orientado pela psicanálise, voltado às pessoas afetadas pela violência armada de Estado (VA). Temos constatado a urgente necessidade de se pensar uma política pública específica, alinhada à Reforma Psiquiátrica brasileira, que ofereça cuidado aos afetados pela VA: “Precisamos parar a máquina de fazer cadáveres negros. Quando matam um menino na favela, matam também a mãe e uma família inteira”, como nos disse uma mãe que teve seu filho brutalmente assassinado por um agente da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).
Período de Realização Durante os anos de 2020 a 2023.
Objetivos Visando acolher as vítimas e familiares de vítimas desta realidade de guerra, o NUPP/UFF tem ido a diversas favelas do RJ, reunindo-se com diversos movimentos sociais, profissionais da saúde, da assistência social, operadores do direito e mesmo instituições de Direitos Humanos com o objetivo de fundamentar sua clínica e colaborar para a formulação de um atendimento próprio no âmbito do SUS que leve em conta tal realidade das favelas do RJ. Realizamos, assim, atendimentos clínicos orientados por uma prática que entendemos ser antirrascista, baseada em uma “psicanálise em elipse decolonial” - termo utilizado pela psicanalista Andrea Guerra - nos servindo de autoras(es) que pensam a relação entre a constituição do negro e da branquitude a partir do colonialismo.
Resultados Apostando numa outra direção, como possível resultado do trabalho, assistimos os sujeitos que chegam até nós, antes paralisados diante da dimensão traumática de suas perdas, erguerem-se diante dos coletivos e dos movimentos sociais bradando o lema de diversos coletivos de mães em todo o país: “do luto à luta”. Isso tem sido possível porque o NUPP/UFF, posicionando-se como uma clínica-política, não prescinde da dimensão do coletivo, uma vez que isso significaria sustentar uma clínica que apenas atenuasse o sofrimento dos sujeitos afetados pela VA, produzindo apenas ajustamentos e silenciamentos diante de suas experiências. Assim, as atividades do NUPP/UFF preveem também a realização de grupos de conversação e escrita colaborativa com os afetados pela VA, além de fóruns de estudos com os moradores de favela e atividades de formação voltadas para profissionais do SUS. Entendemos que uma Reforma Psiquiátrica que não inclua uma política pública de cuidado aos afetados pela VA ignora as próprias diretrizes da RAPS, a saber, o respeito aos direitos humanos e a promoção da equidade, bem como o reconhecimento dos determinantes e condicionantes sociais de saúde.
Aprendizados A partir de tal dispositivo clínico temos colhido os efeitos psíquicos da VA, que tem se expressado em fenômenos depressivos e melancólicos, ou mesmo em sintomas de despersonalização e condutas inconscientes de suicídio, e não raro no surgimento de doenças coronárias, hipertensão e diabetes. Diante desse cenário, perguntamo-nos, como pensar uma política de cuidado aos sobreviventes afetados pela VA que considere a realidade política, social e histórica brasileira e que atue nas especificidades dessa clínica? De fato, a literatura a respeito da VA e as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos têm nos mostrado a insuficiência da configuração atual da RAPS na atuação diante dessa conjuntura bárbara, atuando na culpabilização das vítimas e em uma aposta na medicamentalização.
Análise Crítica Se já não soubéssemos pelos dados de pesquisas, a experiência cotidiana na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Rio de Janeiro, em geral, já nos mostraria os efeitos dessa política de segurança pública: o genocídio e encarceramento em massa de jovens negros, culminando num verdadeiro processo de melancolização dos moradores afetados pela VA que sofrem com a impossibilidade de acesso a direitos elementares como ir e vir, estudar, e se profissionalizar, além da impossibilidade de vivenciarem seus lutos, vivendo, antes, um constante processo de revitimização nos próprios equipamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) e na participação nos raros processos de inquérito, bem como por meio da mídia e da naturalização da sociedade e dos responsáveis pelo controle externo das instituições de segurança pública. Proporcionam ainda mais sofrimento também as ilegalidades perpetradas por agentes da PMERJ, que ficam claras quando percebemos que nem o impedimento da Suprema Corte brasileira no estabelecimento de uma série de restrições na realização de operações policiais nas favelas durante a pandemia, a ADPF 635, foi obedecida: ao invés disso, a PMERJ cometeu as maiores chacinas em favelas da história do RJ.
|