Comunicação Oral Curta

03/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC5.3 - Racismo, marcadores sociais e o cuidado em saúde

46283 - ESCREVIVÊNCIA SOBRE AÇÕES COTIDIANAS E AGRAVOS NA DESASSISTÊNCIA PRODUZIDA PELO RACISMO “NOSSO” DE CADA DIA
NILCÉIA NASCIMENTO DE FIGUEIREDO - UERJ


Apresentação/Introdução
Desde fevereiro de 2023, componho uma equipe multiprofissional do NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família). Venho de amores pela Atenção Primária à Saúde (APS) desde a graduação. Só agora consigo um contrato para atuar no território que para além de geográfico, é memorial e constituído de lutas políticas por direitos e ações que preveem “reformula-ações” contínuas. Grande parte da população é oriunda das regiões Norte, Nordeste e algumas das Minas Gerais...Trabalhadora/es que construíram a “zona sul da zona oeste” do Rio – A Barra da Tijuca - bairro que abriga grande parte dos ditos emergentes/”novos-ricos”. É fato que há muita luta para reconstruir a APS após ações de desmontes, e da desmobilização provocada pela descontinuidade promovida pelo duelo de forças, entre a Pandemia de Covid-19 e sua temporalidade ao desgoverno ao qual Brasil foi submetido nos últimos anos. Das muitas frentes que poderia acessar, gostaria, porém, de me ater ao recorte racial e de gênero que perpassa meu corpo, o da equipe e ainda das e dos usuária/os. Em dueto, refletir sobre a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e ações onde racismo estrutural/institucional e sexismo, suas repercussões tatuadas em caixa alto sobre corpos pretos e pobres, normatizam condutas desumanas de equipes na saúde.

Objetivos
O objetivo é refletir a partir do corpo, onde a memória da pele compõe uma embriologia ancestral, que além de poder constituir políticas públicas, necessita desvelamento de processos individualizados e representativos.

Metodologia
Certa de que as metodologias universais aprendidas no seio da ciência positivista, jamais conseguirão tabular e ou evidenciar, tantas camadas de iniquidades, considero Escrevivências (1995), metodologia definida por Conceição Evaristo, como uma escrita coletiva feita a partir das memórias de mulheres pretas, registro possível para esse relato.

Resultados e discussão
“Meu corpo igual – por Angélica e Tomaz”
No segundo mês, timidamente chegam alguns casos crônicos; até então jovens acidentados de motocicleta, pós operados em cirurgias ortopédicas bem-sucedidas e elogiadas do hospital de referência. A premissa do fisioterapeuta em uma equipe multi na APS, está na promoção, educação em saúde, e apoio das equipes para manejo de casos que necessitam de um olhar para prevenção, reabilitação e ou mesmo paliativismo. Mas no dia a dia de um território distante, acolhemos casos que deveriam ser ambulatoriais.
Seu Tomaz me chega primeiro. Orientado por sua ACS (Agente Comunitária de Saúde), uma das poucas mulheres pretas da equipe, sobre ter chegado uma nova fisioterapeuta na unidade. Quieto, tímido, com os pés inchados e olhos marejados, tem uma dor nos pés que parece estar para além do tempo de agora. Ao longo de nossa primeira conversa, diz que a última vez que tinha entrado nessa unidade, foi também a última que viu sua esposa. Ela insistiu em trabalhar limpando a casa dos outros, pegou COVID-19 no coletivo veio para a unidade e saiu no vaga zero, e nunca mais voltou- diz ele. Mineiro, homem negro retinto, tem agora uma dor terrível nos dois pés que incham esperando há dois anos e meio por um destino no SISREG. Seu prontuário que o define como de cor parda, descreve uma dor nos joelhos; essa já se foi, agora é a dos pés que o faz chorar quando os toco. Já Angélica, estava marcada para o primeiro horário, ás sete, e não foi orientada em que sala ia ser chamada. Saio as 9:00hs para fazer o atendimento em grupo, em um salão quase 1 km distante; uma parceria com a comunidade; não há espaço para grupos na unidade. Quando retorno as 11:00hs, lá estava a moça, apoiada na beiradinha de um canteiro a volta da árvore, e muita dificuldade em se locomover. Se justifica por não ter me achado, e eu constrangida, peço a ela desculpa pelo mal-entendido. Até esse dia ninguém se perdeu de onde eu estava ou me tinha esperado por quatro horas. Será o fato de ser uma mulher negra retinta, malvestida, e ainda ter algumas lesões dermatológicas, um indício de que ela pudesse não ser recebida como as outras pessoas?! Ela que aos 34 anos já é avó, teve um rompimento total dos ligamentos do joelho esquerdo, e no mesmo hospital que atendeu os motociclistas acidentados que orientei nesse período, todos homens brancos satisfeitos com o excelente trabalho da ortopedia, teve sua perna imobilizada por seis meses. Veio com um pedido do médico para 60 sessões de fisioterapia e o seguinte recado: “caso não melhore, volte para ver se vamos te operar”... Angélica tem uma consolidação da articulação do joelho; seu quadril em efeito cascata, já também não funciona na biomecânica esperada, e ainda tem uma escoliose na sua coluna que “reorganiza” uma nova forma de andar.

Conclusões/Considerações finais
Essas escrevivências são pequenas mostras da urgência da inserção permanente da PNSIPN nos serviços e equipamentos de saúde, com desenvolvimento de ações estratégicas de identificação, combate e prevenção do racismo institucional nos ambientes de trabalho, nos processos de formação e educação permanente.