03/11/2023 - 08:30 - 10:00 COC14.2 - Síndrome Congênita do Zika e Covid-19: aprendizados e desafios |
47247 - DESIGUALDADES DE GÊNERO NA VIDA COTIDIANA DE JOVENS DO ENSINO MÉDIO: IMPACTOS DA FASE AGUDA DA COVID-19 JAN STANISLAS JOAQUIM BILLAND - USP, GABRIELA JUNQUEIRA CALAZANS - USP, CRISTIANE GONÇALVES DA SILVA - UNIFESP
Apresentação/Introdução A pandemia de COVID-19 pode ser abordada como uma sindemia, considerando sua coocorrência com outros processos epidêmicos com os quais compartilha determinantes, exacerbando desigualdades sociais. Reciprocamente, o contexto pandêmico também contribuiu para agravar desigualdades sociais. No caso da desigualdade de gênero, houve aumento da dedicação das meninas e mulheres ao trabalho doméstico e de cuidado; da violência por parceiro íntimo; e em impactos negativos para sua saúde sexual e mental, seus estudos e trabalho. Diante de prováveis novas crises sanitárias, torna-se relevante aprofundar a compreensão de como a fase aguda da pandemia afetou dinâmicas da vida cotidiana, resultando nesses agravamentos da desigualdade de gênero. Este estudo observou essa dinâmica entre rapazes e moças, no âmbito de uma pesquisa-intervenção sobre prevenção de IST/Aids, violência e sofrimento psicossocial com estudantes de ensino médio, atravessada pela emergência da COVID.
Objetivos Compreender o impacto da pandemia de COVID-19 sobre os processos que constroem desigualdades de gênero na vida cotidiana de jovens do ensino médio.
Metodologia Organizamos grupos focais on-line em 2021 com 17 jovens – 2 grupos com moças (síncrono e assíncrono) e 1 com rapazes (assíncrono) – participantes de uma pesquisa-intervenção realizada em 8 escolas públicas em 3 cidades de São Paulo. Investigamos as diferenças no controle por familiares, nas relações afetivas e sexuais e nas práticas cotidianas de cuidados com a COVID-19.
Resultados e discussão Identificamos alguns elementos que aprofundaram as desigualdades de gênero no cotidiano dos e das participantes. Com a suspensão do ensino presencial, houve cobranças excessivas de dedicação aos cuidados domésticos que dificultaram os estudos de muitas moças – indicando que a frequência à escola teria papel estratégico no agenciamento das desigualdade de gênero ao permitir sair do contexto familiar e doméstico. Rapazes tiveram seus tempos de estudo e lazer preservados pelos pais. O controle familiar da mobilidade foi maior para as moças, sob alegação dos pais de risco de COVID-19 e proteção de violência na rua. Elas próprias restringiram mais suas saídas que os rapazes, por compreenderem a necessidade desse cuidado. As moças problematizaram a desigualdade tanto no controle de sua mobilidade quanto no fato de homens desrespeitarem medidas de distanciamento. Tarefas de cuidado e respeito às medidas preventivas da COVID-19 apresentaram convergências nas práticas cotidianas: foram mais frequentemente assumidas por mulheres, enquanto homens e rapazes se desresponsabilizavam por ambas. O governo federal negacionista, ao incentivar que homens saíssem de casa, legitimou ao mesmo tempo sua indiferença às medidas preventivas e sua fuga das responsabilidades de cuidado que, juntas, sobrecarregaram quem ficou em casa. Pode-se, assim, interpretar o negacionismo da COVID como ideologia defensiva a serviço de uma “indiferença dos privilegiados” – que afetou os rapazes, mas caracterizou principalmente os “mais velhos”. Na contramão, alguns homens negacionistas adotaram medidas preventivas da COVID após o adoecimento de mulheres da família, o que sugere um conflito entre normas de masculinidade. Enfim, muitas amizades entre moças não resistiram ao período de distanciamento físico, o que não aconteceu com e entre rapazes. Três possíveis causas foram discutidas por elas: (a) as relações on-line, sem o horizonte de um encontro presencial, causaram “enjoo” depois de um tempo. Os rapazes, que saíam mais de casa, distanciaram-se menos também no plano afetivo; (b) interações com ou entre rapazes focavam mais em tarefas escolares ou jogos, mais facilmente transpostos para o formato on-line, já amizades entre moças envolviam o compartilhamento de experiências íntimas, que dependia de uma confiança construída na convivência presencial cotidiana; (c) a suspensão da convivência presencial deu lugar a um maior uso de redes sociais, o que mudou a dinâmica das relações entre moças, consolidando o seu isolamento coproduzido pela sobrecarga de trabalho doméstico, pelo controle familiar e pelo risco reconhecido da COVID-19: presencialmente, pares ofereciam cuidado e modelos normativos menos inacessíveis; na transição para as redes sociais on-line, as moças ficaram mais vulneráveis a padrões idealizados de feminilidade, e as relações entre elas foram atravessadas por “comparações negativas”, afetando sua “autoestima” e “saúde mental”. Em reação, procuraram “filtrar” ou se distanciar desses espaços e pessoas “tóxicos”.
Conclusões/Considerações finais A crise da COVID-19 foi traduzida na vida cotidiana dos e das jovens na forma de práticas cotidianas promotoras de desigualdade, validando a interpretação de Joan Tronto segundo a qual a feminilização da ética do cuidado resulta no cerceamento do seu potencial político de construção de uma sociedade democrática. Compreender os mecanismos dessa tradução abre perspectivas para formular, com os e as jovens, ações programáticas em saúde promotoras de equidade de gênero.
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