Comunicação Oral Curta

03/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC19.2 - Fomes, interseccionalidades nas políticas públicas em Alimentação e Nutrição

46612 - SENTIDOS DA FOME PRODUZIDOS PELA MÍDIA EM CONTEXTO DE CRISES
FERNANDA RIBEIRO DOS SANTOS DE SÁ BRITO - INJC/UFRJ, TATIANA WARGAS DE FARIA BAPTISTA - IFF/FIOCRUZ


Apresentação/Introdução
Mais de 33 milhões de pessoas passavam fome no Brasil em 2022(Rede Penssan, 2022). Este cenário se configura após o desmonte de políticas sociais e de Segurança Alimentar e Nutricional desde 2016, seguido pela pandemia de Covid-19. Mas a fome sempre foi uma realidade no Brasil, ela é colonial e resultado de uma estrutura de poder que mantém a racionalidade colonizadora. As bases da economia agrícola são de caráter predatório - concentradora de terra e renda, produtora de commodities e de exclusão. Privilegia-se o mercado externo e, com isso, a fome persiste. São milhões de pessoas em situação de fome, ontem e hoje, no Brasil. Mas quem são essas pessoas? Que vidas estão sujeitas à indignidade da fome e à violação desse direito? Quando a fome mobiliza e quando causa indiferença? Quando a mídia contribui para naturalizar, indignar ou mobilizar a sociedade e os políticos?

Objetivos
Analisar os sentidos e usos da fome veiculados na mídia no período de 2017 a 2022.

Metodologia
Foram selecionadas reportagens veiculadas pela mídia jornalística (O Globo, Folha, Carta Capital, Brasil de Fato, IHU On line, Veja) com a temática da fome, entre 2017 e 2022. 2017 foi o primeiro ano sob a vigência da Emenda Constitucional 95/2016, que estabeleceu o novo regime fiscal, num cenário de crise política e econômica. Buscou-se reconhecer nas reportagens dados significativos do cotidiano, constituindo a narrativa e a memória de um tempo (Spink, 2013). Para cada ano buscou-se pelo menos uma reportagem de cada grupo de atores: governantes, especialistas, movimentos sociais e mídia, e a partir de um quadro analítico por ano e atores ,buscou-se identificar os sentidos e usos da fome mobilizados.


Resultados e discussão
Notícias sobre a fome ressurgem de forma importante e crescente a partir de 2017. Num primeiro momento, associada à crise econômica e ao aumento da pobreza, em seguida vinculada ao descaso do poder público e a uma estratégia concreta de desmonte das políticas sociais. As pesquisas estimavam, em 2017, 10 milhões de pessoas em situação de fome. Em 2022, o número triplica. As respostas governamentais mostraram-se lentas e tardias, muitas vezes tratada como algo isolado e associado ao uso político, como no pronunciamento do então Presidente Bolsonaro de que ‘a fome é fake’. Destaca-se o lugar atribuído à fome como algo inerente à pobreza e como pessoas famintas pudessem comer qualquer comida. O governador de São Paulo João Doria propõe a ‘ração humana’, iniciativas do terceiro setor promovem campanhas para reaproveitamento de comida. A pandemia chega em 2020 e as disputas de narrativas se acentuam. A fome é acionada retoricamente para justificar a crítica ao isolamento social. O quadro de fome se acentua. Discursos cínicos e debochados se apresentam por parte do governo federal. O auxílio emergencial é suspenso e a situação se agrava. Acadêmicos, movimentos sociais e organizações não governamentais denunciam o cenário catastrófico e cobram medidas do governo. A mídia assume o lugar da denúncia diária da fome, com imagens sobre o ‘garimpo da fome’ e as estratégias de resistência dos movimentos e comunidades. Ecoa-se o ‘Nós por nós’. 2022, ano eleitoral. O discurso sobre a fome muda na fala do governo federal, inclusive para justificar o aumento do auxílio, o preço do gás, da gasolina e outros incentivos. Mas a situação é caótica, escolas reabertas recebem crianças e famílias famintas. Merendas são reduzidas, sem reajustes. Crianças carimbadas para não repetirem merenda. Escolas punidas por permitirem uma criança levar comida para casa. Não se questiona o fato do Estado não garantir o direito humano à alimentação. Crise humanitária anunciada.


Conclusões/Considerações finais
A fome vai aparecendo em sentidos diferentes no decorrer dos anos, de uma situação invisibilizada torna-se uma crise humanitária. Quem são e por que as pessoas famintas são invisibilizadas? Judith Butler ajuda a pensar como tais distinções operam. Uma vida precária se estabelece na relação com o outro. Uma vida só é considerada vida quando é passível de luto, quando é vista, reconhecida e lamentada a sua morte, e uma ética de responsabilidade se estabelece sobre aquela vida. Por outro lado, invisibilizar e não reconhecer uma vida, nos leva a uma ética de violência, onde aquela vida passa a causar indiferença. A invisibilidade parte de um enquadramento, que justifica a não ação. Quando a fome não é reconhecida como um problema, opera-se uma invisibilização dessas vidas famintas. Quando se destina a essas pessoas qualquer comida é porque existem enquadres que consideram que podem comer qualquer coisa. Nessa realidade operam dispositivos como o racismo, o machismo, o capacitismo, a geração, a classe, que invisibilizam algumas vidas, que não se tornam aparentes, reconhecidas por sua singularidade, e sim por estigmas que justificam uma ética da violência. Permanecemos sob uma ótica colonial, violentando corpos, existências e um dos direitos mais fundamentais, comer com dignidade.