Comunicação Oral Curta

03/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC25.5 - Usuários, gestão do cuidado e vulnerabilidade

45153 - MEU JALECO OU MINHA CAPA DA INVISIBILIDADE? RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UMA ENFERMEIRA ESTRANHANDO O CAMPO DE PESQUISA FAMILIAR
ANA GABRIELA LIMA BISPO DE VICTA - MCO - UFBA, CECILIA ANNE MCCALLUM - UFBA, GREICE MARIA DE SOUZA MENEZES - UFBA


Contextualização
Trata-se de uma reflexão metodológica sobre uma etnografia do Programa Atenas - serviço humanizado de atenção a mulheres em situação de abortamento (provocado ou espontâneo), de uma maternidade pública do nordeste. Concomitante ao processo de produção de dados (observação participante e entrevistas), eu continuei como trabalhadora da Maternidade pesquisada e enfermeira atuante no Programa Atenas.

Descrição
A maior parte do tempo, eu fiz a observação participante de jaleco na Maternidade. Ao usá-lo, era transmitida a mensagem de que eu fazia parte da massa de estudantes e trabalhadores de saúde daqueles espaços. Logo, inserida no contexto da “capa branca”, eu circulava com tranquilidade nos corredores da Maternidade. Não apenas por pertencer àquele ambiente, mas também por compartilhar o código de vestimentas do hospital: jaleco branco, calça, sapato fechado. Não tive problemas ao fazer as minhas observações, e escrevê-las no meu diário de campo nas alas de internação hospitalar. Na verdade, por estar vestindo o jaleco, era abordada pelos meus colegas, para discutir questões sobre o trabalho, e pelas mulheres, para sanar dúvidas sobre saúde ou fluxos da instituição. “Vestir o jaleco” também era a mensagem de que eu estava no meu horário de trabalho, mesmo que eu fizesse as observações nas minhas pausas ou fora do meu expediente. “Vestir a capa branca”, como uma vez uma médica me falou, representava, portanto, que eu era parte da equipe (para as mulheres e profissionais), que eu estava no meu horário de trabalho (para meus colegas), e disponível para fornecer e discutir informações concernentes ao meu trabalho na Maternidade (para mulheres, meus colegas e profissionais). Em suma, usar o jaleco é “abrir às portas” no campo da pesquisa hospitalar. No entanto, eu constantemente me debatia com a questão do afastamento e do estranhamento. “Como eu vou fazer isso?”, eu refletia. Então, após vinte dias de início do campo, eu decidi tirar o jaleco em alguns momentos e experimentar fazer observações sem este “equipamento de proteção individual”. Comecei a perceber algumas diferenças. A retirada do jaleco simbolizou, pra mim, um rito de passagem da enfermeira para a pesquisadora.


Período de Realização
Julho a setembro de 2018.

Objetivos
Discutir o processo de estranhamento de um campo de pesquisa que é familiar ao pesquisador na área da saúde

Resultados
Ao retirar o jaleco, o primeiro sinal de que eu começava a adentrar no estranhamento foi que as pessoas deixaram de me abordar. As mulheres não sabiam que eu era enfermeira da instituição, a menos que já me conhecessem. Logo, elas não me paravam no corredor para me fazer perguntas, caso eu não estivesse de jaleco. Outra consequência de eu tirar o jaleco: meus colegas não me enxergavam ao passar por mim. Eles não me cumprimentavam com um “Oi! Tudo bem?”, um hábito muito frequente entre nós. Ou, quando eles se davam conta de que eu estava sentada (seja observando seja escrevendo minhas notas de campo), e sem jaleco, perguntavam “Tá fazendo o que aí, Gabi?” Esta frase e suas derivações eram recorrentes aos meus ouvidos. Ela simbolizava o quanto o fato de estar ali, sentada, ao invés de “um lado para o outro”, como os meus colegas, me transferia do lugar de enfermeira para pesquisadora. Era como se o meu processo de “transformar o familiar em exótico” (DA MATA, 1978, p.28) só começasse quando os “meus” me estranhassem, ou simplesmente não me enxergassem. Portanto, comecei a viver um processo mútuo de estranhamento: eu tentando me afastar da “enfermeira Gabi” (estranhamento da dinâmica da instituição); e meus colegas não compreendendo a minha postura de pesquisadora (estranhamento do meu “não lugar” de enfermeira).


Aprendizados
Logo, ao retirar o jaleco, era uma sinalização de que, ou eu não estava trabalhando ou que eu não pertencia àquele quadro profissional. Portanto, não estava habilitada para representar a Maternidade, nem sanar dúvidas sobre os processos de saúde e nem sobre o funcionamento da instituição. Assim, durante a observação participante, muitas vezes, para eu ficar “disfarçada” e iniciar o processo de estranhamento, eu tirava o meu jaleco. Dessa forma, eu ficava “invisível” para muitos dos meus colegas de trabalho e também não era uma referência para as usuárias da unidade, pois eu não portava a linguagem não verbal do jaleco. Retirar a minha “capa branca” era sinônimo de usar uma “capa da invisibilidade”.


Análise Crítica
O movimento de tirar o jaleco se contrapõe a outras etnografias na área de saúde, em que os pesquisadores, por não pertencerem àquele grupo, precisam se “caracterizar” e se “disfarçar”, “camuflando-se” entre os profissionais de saúde. Desta forma, estes pesquisadores, muitas vezes, são orientados pela instituição a vestir o jaleco durante o período que ali circulam.