03/11/2023 - 08:30 - 10:00 COC32.4 - Saúde mental, ciências sociais e psicanálise |
46908 - PARTILHANDO OS SONHOS: A ARTE DE NARRAR OS SONHOS COMO ELABORAÇÃO DO/NO LAÇO SOCIAL ABNER FERREIRA BARBOSA - UFRN
Apresentação/Introdução O ato de sonhar é característico da vida humana. Sonhos preenchem nossas narrativas, animam nosso ciclo de sono e enriquecem o sentido que nos constitui na relação com o mundo. Sonhamos durante quase toda a noite (Ribeiro, 2019) e mesmo durante o tempo de vigília estamos a fantasiar, pois, na semelhança do poeta e da criança (Freud, 2016), estamos a criar uma nova ordem que não aquela já estabelecida e consagrada pela realidade.
Freud, em 1900, lança A Interpretação dos Sonhos. Nessa obra, os processos oníricos receberam um novo estatuto, reconhecidos enquanto legítimos atos psíquicos (Freud, 2019). O autor postula que: “O sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido, reprimido).” (Freud, 2019, p.195) Aqui jaz a abertura do sonho enquanto uma via privilegiada de acesso ao inconsciente.
Destaca-se a noção de que o sonho não se encerra no indivíduo, mas faz água no coletivo, por vezes produzindo furos em cenários herméticos. Deleuze e Guattari apresentam em seu Anti-Édipo que: “a produção social é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas (...) o campo social é imediatamente percorrido pelo desejo, (...) a libido não tem necessidade de mediação ou sublimação alguma, de operação psíquica alguma, e de transformação alguma (...) Há tão somente o desejo e o social, e nada mais.” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 46). Dito isso, vale ressaltar que este escrito se inscreve entre e dentre os limiares porosos do ‘dentro’ e do ‘fora’.
Objetivos Testemunhar os agenciamentos produzidos a partir da narração dos sonhos
Propor a prática da partilha e escuta dos sonhos
Refletir acerca da função coletiva do sonho e do sonhar
Metodologia A metodologia orienta-se como uma pesquisa em psicanálise, constituída pela investigação do inconsciente, aliada à escuta clínica e ao arcabouço conceitual dessa área do saber. Ademais, é importante ser dito que acrescentamos a isso referenciais do método cartográfico, extraído das proposições provocativas de Deleuze e Guattari, e dos escritos de Walter Benjamin acerca das noções de testemunho e narração.
Seguindo tais preceitos, formou-se um grupo de partilha e narração dos sonhos composto por universitários. Os encontros ocorriam no Serviço de Psicologia Aplicada (SEPA) da UFRN com frequência semanal e duração de 02 (dois) meses.
A dinâmica do grupo ocorria pela narração dos sonhos, seguindo o paradigma da associação livre, e a confecção de produções estético-políticas viabilizadas pelo desejo. Benjamin (1987, p. 198) nos diz que: “se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso", o que nos faz apostar nas narrativas oníricas como articuladoras do desejo, podendo fluir em atos inventivos lançados ao mundo. A técnica de registro dos dados foi viabilizada por meio da produção de sonhários, espécie de diário a ser habitado pelas produções oníricas, que serviram de instrumento para todos os membros do grupo, e da elaboração do diário de campo por parte do pesquisador.
Resultados e discussão O desenlace do grupo nos encontros semanais mostrou que: 1) os sonhos são relegados a um lugar de inutilidade e esquecimento em nossa cultura, não há lugar social para o trabalho dos sonhos, lançando-os à condição de um resto a ser esquecido. Isso foi algo amplamente tematizado em nossos encontros, percebemos que o conteúdo dos sonhos não encontrava lugar em nossas vidas; 2) vincular os sonhos coletivamente nos permitiu tensionar a barreira da individualidade através da criação conjunta de novos significantes, criando assim um lugar social para o endereçamento dos sonhos, o que nos permitiu um rodopio no que se refere a nossa interação com os conteúdos oníricos; e 3) narrar os sonhos num contexto grupal foi como uma experiência de inscrever-se no outro produzindo similitudes e dissonâncias naquilo que é dito e ouvido, tal processo fez furo na ilusão do eu-soberano, característico da modernidade.
Escolho um sonho trazido no grupo para exemplificar o que foi dito. Uma mulher entra dentro de um supermercado e inicia um protesto, havia uma máquina enorme lá dentro. A mulher decide cometer suicídio nesta máquina como protesto e ela acaba sendo completamente esmagada. Desse sonho, seguiu-se uma sequência narrativa de sonhos tidos por mulheres sendo alvo de violência de gênero, o que produziu acolhida ao sofrimento narrado e denuncia a realidade partilhada de violência. Agenciamentos semelhantes ocorreram ao longo de todo o processo e nisso produzimos e colhemos os frutos de nosso grupo.
Conclusões/Considerações finais O dispositivo grupal para a partilha e narração dos sonhos carrega consigo a potência de reorientar o conteúdo relegado dos sonhos para o tecido social, nos permitindo vivenciar o agenciamento de novas possibilidades a partir daquilo que seria descartado. Além disso, dada a condição irreverente, ‘ilógica’ e ‘estranha’ dos sonhos, tenciona-se a soberania do eu-consciente que busca tudo suprir e tudo entender individualmente.
|
|