Comunicação Oral

03/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO5.3 - Gênero, raça e o cuidado em saúde

46805 - RACISMO, BUCALIDADE E PROMOÇÃO DA SAÚDE BUCAL DA POPULAÇÃO NEGRA
BEATRIZ CARLOS CORRÊA DULIANEL - UNICAMP, RAFAEL AFONSO DA SILVA - UNICAMP


Apresentação/Introdução
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) representa um dos seus principais avanços do movimento negro no campo da saúde, identificando o racismo e as questões étnico-raciais como determinantes sociais da saúde.
Sendo a integralidade um princípio estruturante do SUS e, juntamente com a transversalidade, pilares da PNSIPN, é relevante que essa política se entrelace a outras políticas nacionais, como a Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), focalizada nesta pesquisa.
Vale destacar a ausência na PNSB de referências ao racismo e à população negra. Isso explicita uma lacuna que deve ser enfrentada, buscando alinhar a política de saúde bucal à PNSIPN.
É preciso reconhecer a escassez de discussão e de orientações para a incorporação das questões da PNSIPN no contexto da saúde bucal, sobretudo, na configuração do horizonte prático e normativo do cuidado, considerando que a maioria das pesquisas existentes orientadas para a interface entre racismo e saúde bucal tem recorte epidemiológico.
Consideramos que a incorporação da PNSIPN no campo da saúde bucal passa pela expansão do conceito de saúde bucal e de seu campo de ação. Um dos modos de imaginar essa expansão refere-se às noções de Saúde Bucal Coletiva e Bucalidade.
Esta pesquisa pretende contribuir para a discussão do impacto do racismo e da resistência ao racismo no processo saúde-doença bucal, produzindo pistas para o desenvolvimento da noção de bucalidades negras.

Objetivos
Mapear e analisar as formas pelas quais o racismo afeta as dimensões sociais, culturais, simbólicas e psíquicas que atravessam/produzem bucalidades de pessoas negras e dar as pistas iniciais para a construção da noção de bucalidades negras como conceito operativo para estabelecer uma conexão entre a PNSIPN e a PNSB, com base na integralidade do cuidado.

Metodologia
Como método qualitativo de coleta de dados, foram realizadas entrevistas individuais semi-estruturadas, com roteiro de 32 perguntas, com seis membros do Movimento Negro Unificado (MNU) de Campinas. O material das entrevistas foi transcrito e foi utilizada a técnica de análise temática para explorar os resultados.

Resultados e discussão
O conceito de bucalidade reconhece a boca como processo corpo-biográfico e, portanto, histórico, social e político. Por isso, ao tratar da percepção dos entrevistados, vale começar por saúde em geral. Nesse contexto, notamos a pregnância do discurso “persecutório” dos “estilos de vida”, predominando a moralização da alimentação e a referência a atividades físicas. No entanto, quando introduzimos o racismo, indagando se este poderia influenciar a saúde, todos os entrevistados mudaram o discurso, fazendo emergir o tema dos determinantes sociais de saúde, sendo a raça um determinante estruturante de saúde.
Ao falar de saúde bucal, embora a prevalência das referências às prescrições pastorianas da odontologia e às bioasceses do sujeito dentarizado (obcecado por escovação e fio dental), parecessem remeter ao mesmo universo anterior, o da “saúde persecutória”, há uma diferença: a dimensão relacional da boca (a estética, a comunicação, as relações eróticas) ganhou destaque.
Adentrando territórios mais específicos das bucalidades negras, a pesquisa fez emergir dimensões importantes:
- A boca negra participa de estereótipos racializados, havendo alusão a problemáticas representações da boca negra no contexto escolar e a injúrias envolvendo a boca, sob o signo do “beiço”.
- Esses estereótipos são construídos dentro das dinâmicas interseccionais do “racismo genderizado”, sendo a boca, sobretudo, da mulher negra, hipervisibilizada dentro de relações de hipersexualização/objetificação.
- A estereotipização afeta a subjetivação de pessoas negras, que se retraem (a mãe de uma entrevistada não usa batom para esconder a boca) ou têm de desenvolver recursos para defender-se das injúrias, das “medidas” do “racismo genderizado” (que medem a conformidade ou defasagem em relação ao estereótipo), ou do assèdio.
- Pensando na função de comunicação, as bucalidades negras são atravessadas por relações de poder/subordinação e de resistência que envolvem as existências negras em contextos racializados, sendo a boca negra um lugar que se constitui ora pelo silenciamento racializados (como bem representado pela máscara bucal da escrava Anastácia); ora como um território entrincheirado, pronto para produzir palavras de defesa, em uma guerra permanente; ora encontra linhas de fuga nas “africanidades” e suas “musicalidades”. “O racismo mata, as africanidades curam”, disse um entrevistado.


Conclusões/Considerações finais
Ao fazer emergir esses territórios sociais e subjetivos, a noção de bucalidades negras pode funcionar como conceito operativo para produzir cuidados à saúde bucal da população negra, permitindo desenvolver estratégias interprofissionais para cuidar do desenvolvimento saudável da capacidade das bocas negras exercerem sem limitações as funções da boca (manducação, linguagem e erótica).