47378 - REFLEXÕES SOBRE GÊNERO, SENIORIDADE E SAÚDE EM COMUNIDADES RURAIS DO BAIXO SUL DA BAHIA FELIPE ROCHA SANTOS - ISC/UFBA, CLARICE SANTOS MOTA - ISC/UFBA, LENY BONFIM TRAD - ISC/UFBA
Apresentação/Introdução Embora o uso do termo “rural” seja consideravelmente ambíguo, variado e arbitrário na literatura acadêmica, a confabulação mitológica da modernidade ainda fertiliza a ideia do “rural” como uma encarnação daquilo que é “tradicional”, “atrasado”, “primitivo” e “subdesenvolvido” (ABDULWAKEEL, 2017; SIBAI, 2016, p. 41).
Nesse mito, o dispositivo de “gênero” exerce um papel regulamentador. Assim, enquanto o “mundo urbano” é associado ao “racional” e “moderno”, logo, a vanguarda do “progresso” em termos de “gênero”, o “mundo rural” carrega a imagem do que ainda é obsoleto e antiquado nesse campo. A “camponesa”, particularmente aquela envelhecida, consiste no alvo desse poder-fantasia.
Entretanto, uma pesquisa participativa em comunidades rurais do Baixo Sul da Bahia liderada pelo ECLIPSE, um programa global que investiga o impacto social da Leishmaniose Cutânea (LC), apresenta desafios a esse esquema binário e aponta para necessidade de complexificar a categoria “gênero” no meio rural agregando a ela a análise de sistemas baseados no “privilégio de nascimento” ou “senioridade”.
Objetivos Evidenciar como a imbricação entre “gênero” e “senioridade” incrementa novos insights para a análise das relações socioculturais e de poder em contextos rurais, mormente na pesquisa qualitativa em saúde.
Metodologia Trata-se de uma pesquisa qualitativa de natureza etnográfica que empregou a microanálise de dados recolhidos durantes imersões em campo nos anos de 2020-2022 nos distritos rurais de Corte de Pedra (Presidente Tancredo Neves-BA) e São Paulinho (Teolândia-BA). O material etnográfico (entrevistas semiestruturadas e registros autorizados em áudio de diálogos não-formais) foi transcrito, armazenado, submetido a categorização, seleção e diálogo com a literatura científica.
Resultados e discussão A “senioridade” pode ser definida como um modelo de organização hierárquica e social baseada na idade cronológica, não exatamente marcada pelo “gênero” do sujeito depositário (OYĚWÙMÍ, 2021). Já a “gerontocracia” é a “visão de que a velhice é a base da sabedoria”, o que transmite ao mais velho respeito e honra distintivos (ADEGBINDIN, 2011, p. 455).
Nas comunidades analisadas, as mulheres mais velhas acumulam ofícios que podem fundir os poderes “espirituais” e “temporais”. Isso pode corresponder ao exercício de ocupações que manifestam o domínio dos ciclos de vida-morte e de saúde-doença-cuidado como, por exemplo, o parto, o exame empírico da natureza, o conhecimento sobre as doenças e métodos de diagnóstico e tratamento e os saberes litúrgico-rituais relacionados ao réquiem. Além de concentrarem poder político e moral como as principais lideranças da comunidade, algumas vezes atuando para influenciar o voto dos membros do distrito no pleito eleitoral municipal.
O poder exercido por essas mulheres não é comparável àquele operado por outras mulheres e homens mais novos. Sua presença impõe aos demais respeito e honra no âmbito familiar e social mais amplo. Mesmo quando casadas – como é o caso de nossa informante em uma das comunidades – sua posição não é determinada por seu estado civil mediante o contrato matrimonial. E o casamento tardio e divórcio são considerados como expressões de sua autonomia individual e independência econômico-financeira. Sua liberdade sexual não é um constrangimento.
Em ambas as comunidades, o fato de suas principais lideranças serem também prestadoras de cuidados primários e especializados “leigos” para os acometidos por LC, percebe-se que seu domínio de aspectos do conhecimento biomédico lhes confere ainda maior autoridade e honra. Um elemento que eleva a deferência que recebem como pessoas que controlam certas técnicas e métodos considerados eficientes.
Um fator notável é sua competência moral para arbitrar ou influenciar em questões hodiernas. Em uma comunidade, a mais velha usufruiu de seu poder para exigir o respeito a membros não-heterossexuais e a sacerdotisa umbandista local, embora ela mesmo seja uma liderança católica. Enquanto em outra comunidade a mais velha impôs a necessidade de tolerância entre católicos e evangélicos.
Conclusões/Considerações finais A necessidade de suspender o juízo binário acerca do “rural” e o “urbano” que instrumentaliza o dispositivo regulador de “gênero” para apresenta-lo como monolítico e inflexível em torno de certas normas é urgente, pois amplia o alcance da narrativa moderno-capitalista do “progresso”.
Nas comunidades analisadas, observa-se que a senioridade apresenta-se como um elemento permanente que tensiona as relações de gênero ao transmitir a certas mulheres mais velhas um lugar de enunciação epistemológico, proeminência social e autoridade moral. Isso tudo muitas vezes através do domínio de saberes relacionados a saúde-doença-cuidado.
Não defende-se aqui uma noção de “matriarcado” e muito menos a ideia de que as tensões relativas ao gênero são suspendidas ou superadas. Mas, aponta-se que esse elemento considerado “tradicional”, a senioridade, que é repleto de suas próprias ambivalências, contradições e limitações, embora não seja um elemento dominante é, sem dúvida, sobressalente e desestabilizador da ordem sexista e patriarcal.
|