Comunicação Oral

03/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO16.6 - Saúde Reprodutiva e ciclos de vida

47386 - MORTE E VIDA NO DEBATE SOBRE ABORTO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE A ADPF 442
LARISSA NADINE RYBKA - FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA/ USP, CRISTIANE DA SILVA CABRAL - FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA/ USP


Apresentação/Introdução
A ADPF 442 propõe a descriminalização do aborto induzido pela própria gestante ou com seu consentimento, até a 12ª. semana de gestação. Em agosto de 2018, o Supremo Tribunal Federal realizou uma audiência pública para subsidiar sua decisão sobre a ação impetrada. Considerando a centralidade do argumento de defesa da vida/combate à morte, tanto nas exposições favoráveis quanto naquelas contrárias à ADPF, analisamos os distintos enquadramentos utilizados pelos atores políticos em cena, ao debater a problemática do aborto em termos de um embate entre morte e vida.

Objetivos
- identificar as demandas específicas inscritas nessa bandeira de “dupla face” (a luta pela vida e contra a morte), conforme os atores políticos que a reivindicam
- examinar os efeitos materiais e simbólicos de cada uma das posições defendidas na audiência pública, assim como suas conexões com os distintos projetos de gestão da vida (e da morte) em disputa no Brasil contemporâneo

Metodologia
O material empírico da pesquisa é composto pelos vídeos que contêm o registro completo da audiência pública e pelo documento com a transcrição das exposições, ambos disponibilizados pelo STF. O acompanhamento presencial da audiência pela primeira autora também gerou registros em diário de campo. Assim, a pesquisa comporta uma dimensão etnográfica que proporciona um olhar privilegiado à análise documental, principal estratégia metodológica utilizada.

Resultados e discussão
As discussões em torno da morbimortalidade materna ocupam um grande espaço nas exposições favoráveis à ADPF 442. No que se refere ao aborto, a/os expositora/es desse campo ressaltam que as mortes, os casos de near miss e as sequelas físicas e psicológicas incidem de modo desigual sobre as mulheres, conforme a posição que ocupam nas hierarquias raciais, territoriais e de classe. Esses desfechos desfavoráveis decorrem tanto de complicações do aborto inseguro quanto da interdição da interrupção da gravidez de risco, em um contexto de ilegalidade e estigmatização. O estatuto de crime do aborto impõe obstáculos à interrupção da gravidez, mesmo nos casos previstos há mais de 80 anos no nosso Código Penal (risco à vida da gestante e gravidez resultante de estupro). Apesar dos dados consistentes sobre a alta taxa de mortalidade materna no Brasil e sobre a contribuição da criminalização do aborto para a produção desse cenário, os atores contrários à ADPF 442 minimizam e desqualificam tais dados, por vezes contrapondo sua experiência pessoal a estudos científicos robustos.
Ao mesmo tempo que esses atores demonstram seu desprezo pelas vidas de meninas e mulheres que são diariamente ceifadas ou gravemente afetadas pela criminalização do aborto (seja na esfera sanitária ou penal - igualmente seletiva), eles defendem sua posição em nome da vida. Seus discursos têm como foco um embrião/feto completamente desconectado do corpo que o gesta, uma representação potencializada pelo recurso a imagens (fotografias, vídeos, réplicas emborrachadas de fetos) e que tem como objetivo alimentar a ideia de uma suposta autonomia e universalidade do embrião/feto, construído como “sujeito de direitos”. O estratagema da personificação do embrião/feto atinge o seu auge com a confusão deliberada entre as condições de zigoto, embrião, feto, bebê e criança/pessoa, visando qualificar a interrupção voluntária da gravidez como assassinato.
Enquanto a “defesa da vida” pelos atores contrários à ADPF 442 se esgota no discurso vazio da “inviolabilidade da vida humana desde a concepção”, repetido ad nauseam, no campo favorável à ação encontramos a defesa coerente de políticas sociais de caráter universal e integral, não apenas no âmbito da saúde sexual e reprodutiva, mas em todas as dimensões da vida, abrangendo a proteção social à maternidade desejada e à infância. Entre os atores neoconservadores, comprometidos com o neoliberalismo, há um reforço à função protetora da esfera privada, representada pela família e por comunidades religiosas, em detrimento de processos coletivos de luta pela garantia plena de direitos e por justiça social.

Conclusões/Considerações finais
A manutenção de uma norma penal notoriamente ineficaz no cumprimento de seu fim declarado não se explica por mera hipocrisia ou “moralismo”. A defesa do estatuto de crime do aborto tem muito mais a ver com a conservação de uma ordem social que não pode prescindir do controle da sexualidade e da capacidade reprodutiva das mulheres (sobretudo, de determinadas mulheres) do que com a proteção à vida dos chamados “nascituros”.
A usurpação da bandeira da “defesa da vida” por atores neoconservadores engajados na campanha antiaborto serve para encobrir e/ou justificar a violação sistemática dos direitos de meninas, adolescentes e mulheres em curso no Brasil. Desmascarar essa estratégia e a concepção abstrata e idealista de vida que lhe subjaz é uma das tarefas urgentes dos movimentos comprometidos com uma defesa da vida calcada na materialidade das condições de sua reprodução, em cada contexto histórico-social singular.