46429 - ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL: AFINAL, DO QUE ESTAMOS FALANDO? REFLEXÕES A PARTIR DA HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA FERNANDA CANGUSSU BOTELHO - UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
Apresentação/Introdução A noção de alimentação saudável, bastante popularizada no campo da saúde e mesmo no senso comum, se apresenta como horizonte normativo das práticas, ações e políticas do campo da alimentação e nutrição. Um componente do cuidado alimentar e nutricional está na promoção da alimentação saudável, entendendo que a palavra saudável aqui significa aquilo que favorece a saúde e não aquele que tem saúde. Este adjetivo cria uma separação entre o modo de se alimentar que beneficia a saúde e, portanto, que deve ser valorizado e ambicionado, e aquele que não preenche certas expectativas em relação à mesma. É justamente neste ponto que este ensaio teórico busca se debruçar: existe uma compreensão de saúde quando se qualifica a alimentação como saudável ou não saudável, o que por um lado é importante, mas por outro implica limites para a atuação sobre o tema, especialmente nas interações entre o profissional e o usuário de serviços de saúde.
Objetivos Este ensaio teórico visa explorar criticamente os significados da expressão alimentação saudável a partir da hermenêutica contemporânea.
Metodologia Buscou-se trazer um olhar para o adjetivo saudável a partir da visão de saúde desenvolvida por Ayres (2009), ancorado na hermenêutica contemporânea em diálogo com Gadamer, Habermas e Ricoeur. Adicionalmente, recorre-se diretamente à ideia gadameriana de aplicação, trazendo este debate que está colocado de forma mais ampla no campo da Saúde Coletiva em outro momento sócio-histórico para refletir sobre uma questão do núcleo da alimentação e nutrição na atualidade.
Resultados e discussão Ayres é um dos autores da Saúde Coletiva que se opõe ao hegemônico paradigma biomédico para conceber a saúde. Aqui a saúde não é vista como um estado de equilíbrio, mas como uma reacomodação constante diante da experiência vivida, ou seja, a saúde é uma ideia a ser construída a cada momento por indivíduos localizados sócio-historicamente. Portanto, o autor propõe um olhar para a intersubjetividade e o encontro entre pessoa que cuida e pessoa cuidada no sentido de co-construir projetos de felicidade que devem nortear aquela ação. A partir de um olhar hermenêutico, não se pode definir a saúde de antemão, visando apenas o êxito técnico pautado por uma lógica técnico-científica, embora ele continue presente, mas há que se contemplar também o sucesso prático, ou seja, incluindo as implicações simbólicas, relacionais e materiais que as práticas de saúde tem para a vida dos sujeitos envolvidos nelas. Mas se a noção de saúde que guia cada encontro entre profissionais e usuários dos serviços não pode ser concebida a priori, aquilo que promove a saúde, ou o saudável, também não pode. É aqui que aparece um ruído na ideia de alimentação saudável. Embora a compreensão de alimentação saudável tenha mudado historicamente, hoje ela nos remete a uma ideia de basear-se em alimentos in natura e minimamente processados, em grande medida como efeito do Guia Alimentar para a População Brasileira. A partir dessa matriz, ainda que se passe por uma certa visão de valorização da cultura alimentar, há uma estruturação da alimentação conforme uma classificação dos alimentos segundo critérios de ordem técnico-científica. Ou seja, impera um horizonte normativo da alimentação saudável fundada majoritariamente pela racionalidade da ciência dos alimentos, notavelmente no que se refere ao seu processamento, e da epidemiologia, referenciais distintos do que se está propondo aqui para pensar a saúde. Não se quer negar o avanço que essa forma de conceber a alimentação representa em relação à concepção pregressa de reducionismo em torno dos nutrientes. No entanto, paradigmaticamente a concepção de alimentação saudável continua estruturada do mesmo modo: uma divisão entre o que é saudável e o que não é saudável aprioristicamente, o que está na contramão de uma compreensão hermenêutica de saúde.
Conclusões/Considerações finais Este ensaio não visa fazer uma contraposição destrutiva da visão de alimentação saudável que vem norteando as práticas, ações e políticas de saúde. Quer-se aqui problematiza essa visão colocando que concepções rígidas baseada em dicotomias sobre a saúde não dão conta da complexidade que é realizar o cuidado alimentar e nutricional na prática. Aqui pretende-se chamar atenção aos aspectos relacionais e subjetivos, mas se expandirmos a problematização para aspectos sociais e econômicos, a insuficiência da visão hegemônica de alimentação saudável, com foco nos alimentos e no seu processamento, se torna ainda mais evidente. A partir de uma visão hermenêutica da saúde, a noção de alimentação saudável não pode ter um sentido inequívoco, tampouco universal. Há que se permitir que os conhecimentos e sentidos práticos da alimentação na vida das pessoas esteja presente ao tratar de alimentação no encontro clínico, ou melhor, permitir que a alimentação seja um componente de produção deste encontro, e isso significa que uma classificação de alimentos não pode ser concebida como única forma legítima de compreender a alimentação como saudável.
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