Comunicação Oral

03/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO19.4 - Reflexões conceituais como pistas para repensar o cuidado alimentar e nutricional no SUS

47237 - SISTEMA AGRÍCOLA TRADICIONAL DO RIO NEGRO: DISPOSITIVO SOCIOPOLÍTICO E CULTURAL DE (SOBRE)VIVÊNCIA E ENFRENTAMENTO AS INIQUIDADES ALIMENTARES
JÚLIA SOUZA PINTO CAMANHO - FSP/USP, JOSÉ MIGUEL NIETO OLIVAR - FSP/USP


Apresentação/Introdução
A Bacia do Rio Negro corresponde a uma região amazônica com grande diversidade socioambiental, sendo sumária para a manutenção da biodiversidade e da vida. É reconhecida como oportunidade para a construção compartilhada de estratégias para o desenvolvimento ambiental e sociocultural sustentável, tendo em vista que, neste território, as questões sociais, culturais e humanas relacionam-se à natureza. A região é ocupada majoritariamente por populações indígenas e tradicionais, tendo 79% de seu território recoberto por áreas de proteção especial. A esta região está circunscrito o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (SAT-RN), compreendido enquanto “o complexo de dimensões cosmológicas, culturais e técnicas que abrangem as práticas relacionadas às atividades de agricultura, a sociabilidade e a alimentação” e praticado por 23 povos indígenas.

Objetivos
Identificar as ameaças à segurança alimentar e nutricional (SAN) dos povos indígenas rionegrinos e avaliar o SAT-RN enquanto dispositivo de promoção de SAN.

Metodologia
Realizou-se revisão bibliográfica sobre o SAT-RN de modo a reunir saberes já produzidos acerca desse sistema agrícola. Além de produções científicas (pesquisas e artigos), fizeram parte da revisão documentos como relatórios, dossiês, pareceres e certidões. A busca foi realizada no Scielo, LILACS e na literatura cinzenta com uso de descritores associados pelo operador booleano AND, a saber “Sistema agrícola tradicional” e “Rio Negro”, restrita aos campos de título e/ou resumo.

Resultados e discussão
A vulnerabilidade alimentar das populações indígenas do Rio Negro é impactada pelas mudanças climáticas e catástrofes ambientais que ocorrem na região, à exemplo das cheias recordes registradas em 2021. As inundações destruíram roças de comunidades que vivem nas cabeceiras dos rios e 16 mil famílias foram afetadas. O excesso de umidade, no período em que se realizam as queimas para as roças, representa uma das ameaças acarretadas pelas mudanças climáticas à SAN das populações indígenas. Concentram-se nos últimos 12 anos as sete maiores cheias do Negro, indicativo do agravamento das mudanças climáticas. O garimpo ilegal enquadra-se, também, como fator de alterações ambientais e climáticas, impactando no cenário alimentar e nutricional regional. O garimpo na Terra Indígena Yanomami quase triplicou nos últimos três anos, sendo mais de metade dos habitantes da reserva afetados pela atividade. Fatores econômicos auxiliam na compreensão da explosão do garimpo: aumento do preço no mercado internacional de commodities que são exploradas em Terras Indígenas; aumento do desemprego e crise econômica atraem a população a postos de trabalho informal, como o garimpo; fragilização da fiscalização governamental e impunidade do garimpo ilegal. A organização urbana da região e a introdução de produtos alimentícios exógenos àquele território, iniciou, já no século XX, uma modificação no campo da alimentação orientada pela lógica monetária, ameaçando a SAN das populações indígenas do Rio Negro. Assim, com o passar dos anos, produtos industrializados foram introduzidos à rotina alimentar dessas populações e, mais recentemente, os ultraprocessados colocam em risco a relação dessas populações com os alimentos produzidos na roça, especialmente as gerações mais jovens. O não reconhecimento dos ingredientes que compõem a alimentação tradicional gera também o abandono do trabalho no campo, fator que impacta na situação alimentar e nutricional dos povos indígenas. Neste contexto, apresenta-se a centralidade e importância do SAT-RN enquanto dispositivo de cuidado alimentar e nutricional, gestão da vida e disputa de mundo ao passo que se associa às camadas social, cultural e material, expressando concepções de mundo ao reunir elementos não somente cosmológicos, mas também culturais, ecológicos e históricos. São nele integrados saberes do manejo da terra e das variedades cultivadas, assim como narrativas míticas que ordenam a atividade agrícola, reiterando as roças enquanto artefato de conservação e manejo da agrobiodiversidade. Os modos de utilização, preparação e consumo dessas variedades pelas populações indígenas, assim como as relações sociais tecidas ao redor da alimentação, suas cosmologias, simbologias, crenças, ritos e mitos compõem também o SAT-RN e o enquadram enquanto potencial dispositivo de produção de SAN.

Conclusões/Considerações finais
As ameaças à SAN das populações indígenas rionegrinas associam-se às mudanças climáticas e catástrofes ambientais, ao garimpo ilegal e à introdução de produtos industrializados à cultura alimentar regional. O SAT-RN enquadra-se historicamente enquanto dispositivo orquestrado pelo movimento indígena rionegrino para o enfrentamento de iniquidades sociais e apresenta-se enquanto ferramenta possível para a promoção da SAN desses povos, extrapolando as estratégias fornecidas por agências governamentais no âmbito do SUS. Neste sentido, deve ser enquadrado, protegido e incentivado por políticas públicas, sendo incluído nas agendas da Saúde Coletiva.