Comunicação Oral

03/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO23.2 - Migrações e processos de saúde, doença e cuidado I

47255 - DESLOCAMENTOS E REARRANJOS NO CAMPO DE PESQUISA: RELATO DOS (DES)CAMINHOS METODOLÓGICOS EM ESTUDO SOBRE ALIMENTAÇÃO DE IMIGRANTE HAITIANO
LUCIANA SALES PURCINO - UNICAMP, RUBENS BEDRIKOW - UNICAMP, RAFAEL AFONSO DA SILVA - UNICAMP


Apresentação/Introdução
A imigração haitiana no Brasil intensificou-se a partir de 2010 e tem sido marcada por situações de vulnerabilidade (empregos informais, moradias precárias, xenofobia e racismo) que determinam iniquidades em saúde como a insegurança alimentar e nutricional (IAN). Ações e políticas públicas de saúde para o enfrentamento da IAN e de suas implicações no processo saúde-doença-cuidado são fundamentais, mas precisam ser pautadas por pesquisas científicas que reconheçam diferenças étnico-culturais e demandas específicas desse grupo populacional. Em revisão de escopo realizada pelos autores não foram encontrados na literatura científica nacional estudos sobre alimentação e nutrição de imigrantes haitianos e na literatura internacional foram encontradas pesquisas com limitada pertinência para o contexto brasileiro ou com abordagens quantitativas que não permitiram a compreensão de determinantes socioculturais de saúde de modo que pouco podem contribuir para ações e políticas que respeitem a alteridade e a diversidade. Essa constatação nos motivou a desenvolver uma pesquisa qualitativa sobre alimentação do imigrante haitiano em uma ocupação urbana adotando orientação teórica-conceitual decolonial. Neste presente relato de pesquisa, abordamos apenas eventos da etapa pesquisa de campo, recorte que visou privilegiar o relato de questões que emergiram nessa etapa e que produziram deslocamentos no processo de construção metodológica. Entendemos que o relato dessa etapa seja válido para que outros pesquisadores iniciem seus percursos mais precavidos dos prováveis desafios envolvidos em campos similares, mas também temos o propósito de valorizar uma disposição em fazer deslocamentos ou rearranjos metodológicos sempre que necessário para garantir uma postura não-colonizadora, considerando conhecimentos coproduzidos entre pesquisadores e sujeitos da pesquisa em contextos específicos.

Objetivos
Relatar e discutir revisões e deslocamentos ocorridos no processo metodológico em resposta a conhecimentos e reflexões que emergiram durante a pesquisa de campo.

Metodologia
Trata-se da análise crítica de atividades realizadas em pesquisa de campo e da revisão do processo metodológico. O campo foi realizado em dezembro/ 2022 e junho/ 2023 em uma ocupação urbana na cidade de Campinas-SP onde se localiza uma comunidade de imigrantes haitianos. As atividades analisadas foram entrevista em profundidade semiestruturada com questões abertas (n = 3 imigrantes haitianas) e observação participante (2 eventos). Os objetos da análise foram a transcrição da gravação das entrevistas e as anotações descritivas e analítico-reflexivas do caderno de campo. Os critérios foram pertinência, produtividade e adequação ética.

Resultados e discussão
A análise das entrevistas indicou que a limitada fluência em português das entrevistadas prejudicou a produtividade e foi um eventual fator estressor para elas. O ajuste foi norteado por uma disposição decolonial expressa pela valorização do créole hatiano: aprendizado de noções básicas pelo entrevistador e criação de materiais de apoio (como imagens de alimentos/ comidas) com legendas em português, créole haitiano e francês.
A análise das respostas às questões destinadas a identificar e interpretar as percepções sobre a relação entre a nutrição/ alimentação e o processo saúde-doença-cuidado revelaram um total distanciamento das entrevistadas da concepção biomédica e do discurso nutricional hegemônico e suscitaram dúvidas sobre a pertinência e produtividade dessas perguntas nos desafiando a deslocar nossas próprias concepções sobre saúde e fazendo-nos pensar a saúde pela perspectiva da vida concreta e do sensível. O roteiro foi revisado acolhendo a visão das entrevistadas: alimentação como marcador sociocultural que possibilita desfrutar a vida e o encontro.
A observação participante escancarou a situação de pobreza e as entrevistas confirmaram a falta de acesso econômico aos alimentos abalando nossas pretensões investigativas sobre qualidade da alimentação tradicional haitiana visto que uma situação de IAN como a observada representa um viés para avaliar qualidade. Rearranjos foram feitos no roteiro da entrevista desviando o foco para estratégias de sobrevivência não-hegemônicas que podem revelar práticas criativas e potentes que acabam por qualificar a alimentação.


Conclusões/Considerações finais
O relato mostrou como o processo metodológico pode ser dinâmico e coerente com a experiência concreta do campo de pesquisa. A assunção do caráter provisório dos conhecimentos, instrumentos e posturas definidos previamente ao campo favoreceu uma disposição para aprender com os sujeitos de pesquisa e com as experiências no contexto específico que, por sua vez, possibilitou deslocamentos que acreditamos serem fundamentais para que as diferenças étnico-culturais e as demandas específicas dos imigrantes haitianos sejam efetivamente reconhecidas.