Comunicação Oral

03/11/2023 - 13:10 - 14:40
CO32.6 - Decolonização dos saberes e práticas em Saúde Mental

47412 - A ESTÉTICA COMO INSTRUMENTO DE DECOLONIALIDADE NO PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM DE PSICOPATOLOGIA INFANTIL
NATHALIA MAZOLLI VEIGA - IMS - UERJ


Contextualização
Situo-me, como psiquiatra infantojuvenil e mestranda em Saúde Coletiva, buscando transpor as cercas da formação médica. Na luta contra o cenário de crianças cada vez mais interrompidas pelos psicofármacos em excesso, pelas nomenclaturas, diagnósticos e interpretações médicas, afastando-as de seus contextos socioculturais, suas potências e subjetividades.

É através dessa luta que encontro a possibilidade de mirar as infâncias e trabalhar no campo da saúde mental. E é no brincar com as palavras – faladas e escritas - que me reconheço e me mobilizo enquanto mulher, dotada dos muitos privilégios que a minha branquitude e profissão concedem e que me lançam ao compromisso ético com a decolonialidade.

Nesse cenário, a utilização da estética para realizar e descrever atendimentos com as crianças na rede de atenção psicossocial tornou-se meu exercício de sensibilidade e crítica no cotidiano ordinário, deslocando a minha avaliação e linguagem da gramática psiquiátrica dos exames psíquicos e dando protagonismo à voz e cenários das crianças.


Descrição
Em julho de 2021, fui convidada a ministrar a aula de Psicopatologia da Infância para a Residência Multiprofissional em Saúde Mental do IPUB – UFRJ. Preocupada em afirmar esse lugar crítico enquanto psiquiatra, sem deixar de transmitir o conteúdo requisitado para a aula, decidi produzir um encontro iniciado por um relato poético de um atendimento com uma criança que eu havia realizado, naquele ano, pelo Capsi onde eu trabalhava.

A função poética é aquela que está centrada na própria construção da mensagem, no modo como se elabora e transmite o conteúdo. A escolha desse relato se deu justamente pela mensagem que aquela criança havia deixado: assinalou, poeticamente, com as suas palavras, que ela tinha um saber que era somente dela e que as minhas perguntas de “investigação médica” podem ser tão inadequadas quanto violentas. Isso me fixa no incontornável exercício de descolonizar meu pensamento e minha prática.


Período de Realização
Julho 2021 a Dezembro 2022

Objetivos
Transmitir os conceitos da psicopatologia por meio do processo poético que permite, sensivelmente, assinalar essa direção crítica tornou-se o objetivo principal dessa aula; assim como a sensibilização da estética como potente recurso de resistência que pode ser utilizado em outros espaços, como nos projetos terapêuticos singulares e intersetoriais, nas discussões clínicas e atividades coletivas.

Resultados

A experimentação poética na sala de aula, baseada nas palavras de uma criança e nos contextos que estão inseridas, possibilitou a reafirmação dos afetos e inquietações que surgiram na turma, fomentou sensibilidade nas vivências de cuidado com as crianças, sugerindo fortalecer a dimensão política das narrativas em primeira pessoa acalmando, ainda que momentaneamente, a pressa neoliberal em identificar patologias.

Diante disso, fui convidada a realizar a mesma aula nos semestres posteriores, o que me possibilitou elaborar e consolidar essa experiência que aqui descrevo.


Aprendizados
Dulce Critelli (1984) nos coloca que a poesia contraposta à linguagem científica que revela o aspecto objetivável e calculável das coisas, pode tornar tangível o sentido do ser de todas as coisas em nossa existência com elas. Tal como Rancière (2005), entendemos esse modo de produção do conhecimento sensível como um ato político, ético e poético - uma forma de resistência cotidiana.

Contemplada pela obra de Manoel de Barros, que nos afirma que a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças, aponto para as possibilidades de, atrelando arte e ciência, engajarmos, com cada vez mais força, as crianças na Luta Antimanicomial, facultando a elas o lugar de ativas na produção de um mundo social que lhes é próprio, isto é, produtoras de cultura, como afirma Clarice Cohn (2005).


Análise Crítica
Desejo, com esse relato tornar coletivo o convite de ampliarmos nosso repertório de narrativas e práticas de ensino-aprendizagem, inserindo a estética no ensino da psicopatologia infantil como forma de tomada das palavras das crianças e do universo de possibilidades que podem querer dizer, além de retratar suas realidades, muitas vezes, vulnerabilizadas pela sobreposição de opressões e discriminações existentes em nossa sociedade. Para tanto, é necessário fomentarmos pesquisas e ações que insiram essa outra linguagem na produção de conhecimento e ensino da saúde mental infantojuvenil.

Apoiarmo-nos na função poética para imprimir nossos afetos e anseios por justiça social me surge como valiosa alternativa contra hegemônica de acrescentar material subjetivo e força política aos entrelaçamentos que assistimos formar entre os tecidos familiares, sociais e culturais que interpelam as crianças e agem, invariavelmente, na produção do cuidado dirigido a elas. É exercitando esse olhar ético, crítico e sensível para as infâncias, que é possível avançar, através do lúdico, da ciência e da educação pelos caminhos que as crianças, generosamente, insistem em nos apontar.