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Naomar de Almeida Filho fala de educação e Saúde Coletiva à RECIIS
Durante o 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, o Abrascão 2018, Naomar participará do Grande Debate 'Desafios e perspectivas da saúde coletiva'; da Mesa Redonda 'A questão do doutorado profissional na área da saúde coletiva' e ainda na Oficina pré-congresso 'Programa de Pós-Graduação (Mestrado/Doutorado) Interinstitucional Profissional em Saúde Coletiva: Saúde/Educação'; e no Curso pré-congresso 'Compreender Cabanis: porque o modelo de formação em saúde no Brasil é dominado por egrégias faculdades'.
A Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde – Reciis é uma publicação do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde – Icict, da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz. Veja abaixo trechos da entrevista e aqui neste link a íntegra do material.
Reciis: Como você descreveria sua trajetória no processo de construção da Saúde Coletiva?
Naomar de Almeida Filho: Graduei-me na Faculdade de Medicina da UFBA em 1975. Estávamos sob a ditadura militar, mas já num momento em que se começava a organizar, em todo o país, uma resistência política, com uma forte militância na área da saúde, em especial, a chamada “renovação médica”. Eu era recém-formado, estava fazendo o mestrado e, naquele momento inicial, participei também da formação do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde). Essa mobilização se orientou pelos conceitos que depois alimentaram a Reforma Sanitária e o movimento pela Saúde Coletiva. Isso aconteceu justamente a partir de 1979, quando a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) foi fundada. Em seguida, articulamos a retomada de várias entidades, principalmente associações de especialidades e depois associações médicas, conselhos, pelo Brasil inteiro. Foi um movimento também de recuperação das ideias da medicina social
latino-americana, muito rico como processo e como aprendizagem. Participei de todo esse processo ainda como iniciante.
Eu me formei em medicina com a intenção de me tornar psiquiatra ou, pelo menos, atuar na área da saúde mental. Mas por uma série de problemas, inclusive ligados à militância política (pois havia naquele período uma repressão bastante forte), fiz o mestrado em Saúde Comunitária na Universidade Federal da Bahia. Depois, fui cursar o doutorado em epidemiologia nos EUA e me concentrei em epidemiologia da saúde mental. Quando voltei, participei de várias pesquisas e comecei uma carreira acadêmica voltada para a epidemiologia social de problemas relacionados à saúde mental. Meu foco sempre foram as desigualdades: desigualdade de classe, de gênero, de faixa etária, e assuntos ligados ao que a gente chamava na época de epidemiologia psicossocial. Sempre me preocupei muito com a questão de raça e racismo. Minha produção científica, aproximadamente até o ano 2000, era basicamente essa, sempre com um viés teórico e metodológico.
Em 2002, fui eleito reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Fiquei dois mandatos e tive que aprender, de modo muito autodidata, a lidar com questões de planejamento e gestão institucional na área da educação. Claro, levei alguma experiência da área da saúde e terminei me concentrando na interface entre saúde e educação, aí já com alguma produção escrita e reflexão crítica. Eu tinha publicado antes algumas obras sobre a teoria da epidemiologia, mais do ponto de vista epistemológico e histórico; depois, tentei transferir esse mesmo enfoque para a área da educação.
Reciis: E como você definiria o papel da saúde coletiva dentro dessa nova visão?
Naomar de Almeida Filho: Diria que, neste momento, a conexão que estou buscando fazer é estudar educação e saúde como elementos geradores das desigualdades em saúde. Sabemos que simplesmente constatar a existência de desigualdades não vai contribuir para resolver esse grave problema. É preciso buscar as causas das causas das causas. A educação e a saúde são, para mim, poderosos dispositivos de reprodução de formas de desigualdade, inclusive difíceis de lidar, porque se trata de uma desigualdade qualitativa. Nesse caso, temos uma questão séria, porém muito simples: não se trata apenas de os sujeitos terem acesso aos serviços de saúde. É preciso ter acesso ao melhor que os serviços de saúde podem oferecerpara prevenção, promoção, recuperação, proteção da saúde. Essa é uma questão muito ligada ao uso de tecnologia, pois faz parte de uma formação universitária que, no Brasil, tem se implicado não com a superação ou solução, mas com a preservação, conservação, promoção e expansão das desigualdades. O sistema de educação em saúde faz parte de um segmento do Estado dedicado, diretamente, à promoção de competências para reprodução das desigualdades em saúde.
Reciis: Sobre a questão das desigualdades em saúde, como estão sendo avaliadas? O desmonte do Estado e das instituições vem afetando a questão das desigualdades?
Naomar de Almeida Filho: Tenho uma hipótese sobre a desigualdade em saúde que toma como base, primeiro, uma pergunta: qual das desigualdades, na saúde? Por exemplo, uma comparação geográfica entre mortalidade infantil numa área pobre e numa área rica é descritiva. Isto pode indicar, de modo intuitivo, que o fato de a mortalidade ser mais alta na área pobre do que na rica mostra que a concentração de riqueza teria algum papel nesse processo. O que estou agora propondo é outra coisa: estudar desigualdade em saúde implica avaliar aspectos diferentes do próprio conceito de desigualdade, sendo um deles a desigualdade nos indicadores de saúde. Essa é uma desigualdade quantitativa, dimensional. É preciso que se verifique também a questão da posição diferencial dos sujeitos perante programas de promoção da saúde, que vão resultar nesses indicadores. Tem um terceiro ponto que é o acesso aos serviços e a abrangência de sua cobertura. Aí incide um elemento de desigualdade territorial sobre o qual raramente se fala. É a questão da inclusão territorial dos sujeitos, que depende de onde residem, onde trabalham, como se dá sua inserção no território. Identifico ainda uma quarta desigualdade, a mais complexa para lidar, apreender e estudar porque é a mais subjetiva. Refiro-me à desigualdade na qualidade do tratamento.
Como, por exemplo, quando os sujeitos são recebidos na rede de saúde, podem ser tratados desigualmente de vários modos: alguém muito pobre, analfabetos, pessoas que têm pouco acesso à informação, comparados com os que têm acesso a recursos econômicos e que são detentores, por tudo isso, de capital político e poder. Tematizar a questão da desigualdade de modo diferencial já é um primeiro passo. No entanto, esse primeiro passo não a resolve, porque é possível apenas sofisticar a descrição. O que tenho defendido é que precisamos compreender melhor os mecanismos que produzem e reproduzem tais desigualdades. Entre eles, aqueles que introduzem injustiça e indignidade nas desigualdades, e que por isso são capazes de transformar as desigualdades em iniquidades 5 . E acho, como mencionei, que a educação deve ser implicada como fonte importantíssima na produção dessa quarta desigualdade, que é por definição qualitativa e interna aos serviços de saúde.
Reciis: A saúde coletiva no Brasil foi caracterizada por uma relação estreita entre a pesquisa, o movimento social e governo. Essa ligação representou grandes progressos em algumas épocas; às vezes, tendo como protagonista o movimento social, às vezes, a pesquisa, outras vezes, o governo. Mais recentemente essas relações foram rompidas. Como retomar essa tradição de trabalhar juntos?
Naomar de Almeida Filho: Acho que tivemos uma primeira fase no início do movimento pela Saúde Coletiva que demandou muita construção conceitual e outros contribuíram nessa fase, definida por profunda reflexão e construção de um discurso consistente de esquerda, por uma ideologia política clara, visando à renovação na saúde. Logo em seguida, construímos a 8ª Conferência Nacional de Saúde, veio o embate na Constituinte e depois, nos planos legislativos, tivemos normatizações em todos os níveis. Essa foi uma segunda fase, muito importante, delimitada pelo desafio da regulamentação do sistema de saúde. E logo enfrentamos uma terceira fase, com outro enorme desafio, que é o desafio da prática. Alguns poucos colegas da nossa militância já apresentavam experiências de gestão. Mas aí fomos verificar que nosso conhecimento sobre planejamento e gestão era muito limitado, porque nossa atuação tinha problemas para concretizar propostas. A gestão pública não é simples. Ainda mais quando cobrada a produzir resultados com maior ressonância política. Entre 1985 e 1995, muitos grupos ligados à “esquerda sanitária” assumiram posições de gestão em municípios ou em estados. A partir do ano 2000, temos um desafio maior: como escalar essas políticas para o nível nacional. Essa quarta e última fase compreendeu um esforço para a universalização dessas políticas. Aí, o desafio passou a ser muito maior, as demandas mais profundas e amplas; colegas de grande expressão na Saúde Coletiva ocuparam as principais posições de gestão da saúde, no plano nacional. Acho que a saúde coletiva se desenvolveu muito bem nessas quatro fases.
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